KANT...

Ensinar a Pensar

Por: Immanuel Kant

Fonte: http://criticanarede.com/fil_ensinarpensar.html

Espera-se que o professor desenvolva no seu aluno, em primeiro lugar, o homem de entendimento, depois, o homem de razão, e, finalmente, o homem de instrução. Este procedimento tem esta vantagem: mesmo que, como acontece habitualmente, o aluno nunca alcance a fase final, terá mesmo assim beneficiado da sua aprendizagem. Terá adquirido experiência e ter-se-á tornado mais inteligente, se não para a escola, pelo menos para a vida.
Se invertermos este método, o aluno imita uma espécie de razão, ainda antes de o seu entendimento se ter desenvolvido. Terá uma ciência emprestada que usa não como algo que, por assim dizer, cresceu nele, mas como algo que lhe foi dependurado. A aptidão intelectual é tão infrutífera como sempre foi. Mas ao mesmo tempo foi corrompida num grau muitíssimo maior pela ilusão de sabedoria. É por esta razão que não é infreqüente deparar-se-nos homens de instrução (estritamente falando, pessoas que têm estudos) que mostram pouco entendimento. É por esta razão, também, que as academias enviam para o mundo mais pessoas com as suas cabeças cheias de inanidades do que qualquer outra instituição pública.
[...] Em suma, o entendimento não deve aprender pensamentos mas a pensar. Deve ser conduzido, se assim nos quisermos exprimir, mas não levado em ombros, de maneira a que no futuro seja capaz de caminhar por si, e sem tropeçar.
A natureza peculiar da própria filosofia exige um método de ensino assim. Mas visto que a filosofia é, estritamente falando, uma ocupação apenas para aqueles que já atingiram a maturidade, não é de espantar que se levantem dificuldades quando se tenta adaptá-la às capacidades menos exercitadas dos jovens. O jovem que completou a sua instrução escolar habituou-se a aprender. Agora pensa que vai aprender filosofia. Mas isso é impossível, pois agora deve aprender a filosofar. [...] Para que pudesse aprender filosofia teria de começar por já haver uma filosofia. Teria de ser possível apresentar um livro e dizer: «Veja-se, aqui há sabedoria, aqui há conhecimento em que podemos confiar. Se aprenderem a entendê-lo e a compreendê-lo, se fizerem dele as vossas fundações e se construírem com base nele daqui para a frente, serão filósofos». Até me mostrarem tal livro de filosofia, um livro a que eu possa apelar, [...] permito-me fazer o seguinte comentário: estaríamos a trair a confiança que o público nos dispensa se, em vez de alargar a capacidade de entendimento dos jovens entregues ao nosso cuidado e em vez de os educar de modo a que no futuro consigam adquirir uma perspectiva própria mais amadurecida, se em vez disso os enganássemos com uma filosofia alegadamente já acabada e cogitada por outras pessoas em seu benefício. Tal pretensão criaria a ilusão de ciência. Essa ilusão só em certos lugares e entre certas pessoas é aceite como moeda legítima. Contudo, em todos os outros lugares é rejeitada como moeda falsa. O método de instrução próprio da filosofia é zetético, como o disseram alguns filósofos da antiguidade (de zhtein). Por outras palavras, o método da filosofia é o método da investigação. Só quando a razão já adquiriu mais prática, e apenas em algumas áreas, é que este método se torna dogmático, isto é, decisivo. Por exemplo, o autor sobre o qual baseamos a nossa instrução não deve ser considerado o paradigma do juízo. Ao invés, deve ser encarado como uma ocasião para cada um de nós formar um juízo sobre ele, e até mesmo, na verdade, contra ele. O que o aluno realmente procura é proficiência no método de refletir e fazer inferências por si. E só essa proficiência lhe pode ser útil. Quanto ao conhecimento positivo que ele poderá talvez vir a adquirir ao mesmo tempo — isso terá de ser considerado uma conseqüência acidental. Para que a colheita de tal conhecimento seja abundante, basta que o aluno semeie em si as fecundas raízes deste método.

Tradução de Desidério Murcho

Texto retirado de «Anúncio do Programa do Semestre de Inverno de 1765-1766» da colectânea de textos Theoretical Philosophy, 1755-1770 (edição de David Walford e Ralf Merbote, Cambridge University Press, 1992), pp. 2:306-7.

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Filosofia e Abertura de Espírito

Por: Daniel Kolak e Raymond Martin

Quando éramos crianças fazíamos perguntas como as crianças as fazem, com total abertura. De onde viemos? Qual o objetivo da nossa vida? Qual a natureza do universo em que vivemos? O que nos acontece quando morremos?
Sabíamos que não sabíamos as respostas, e queríamos sabê-las. Não pressupúnhamos que as perguntas eram irrespondíveis ou que estavam para lá da nossa compreensão.
Enquanto crianças, estávamos cheios de espanto. O mundo nos espantava. Como adultos pusemos de lado a nossa curiosidade infantil e vivemos numa estrutura de respostas que silencia as questões fundamentais que agora perderam o poder de nos agitar. Encontramos as respostas, mas perdemos o mistério. Como é que isto aconteceu?
O problema não é as respostas práticas. Precisamos delas para viver bem. O problema é que cada um de nós, como veremos, ficou dependente de um complexo sistema entrelaçado de respostas metafísicas acerca do eu, do conhecimento, da realidade, dos valores e do sentido. Muitas vezes, estas respostas são pressupostos profundamente escondidos que, são tão basilares para as convicções que temos de nós próprios e do mundo, que se torna até difícil de perceber que estamos a tomar algo como garantido. Muitas vezes esses pressupostos são respostas a perguntas que nem sequer chegamos a perguntar. No entanto, tais respostas metafísicas, imobilizadas pelo nosso anseio de segurança, acabam por nos imobilizar a nós. Fechados em nossas respostas, ficamos cegos ao fato de que a versão da realidade de que temos experiência e em que acreditamos é tão criada por nós, os observadores, como pelo que observamos.
O problema não é apenas o fato de interpretarmos as nossas experiências. Qual é, afinal de contas, a alternativa? O problema é que interpretamos as nossas experiências de formas limitadas e rígidas, sem nos darmos conta disso. Criamos assim (inevitavelmente) uma realidade mais fixa e estável do que na verdade existe. Esta aparente solidez pode fazer-nos sentir mais seguros das nossas crenças, mas essa segurança aparente assenta em respostas que, em última análise, escondem mais do que revelam. Na melhor das hipóteses, essas respostas dão-nos conhecimento, mas não sabedoria.
O principal obstáculo ao estudo da filosofia não é ainda não sabermos o suficiente; longe disso. O principal obstáculo é já sabermos demais. Este livro acolhe-o na filosofia da forma como Sócrates, se ainda estivesse por cá, o faria: tirando-lhe as respostas debaixo dos pés durante o tempo suficiente para que possa ter a experiência da sabedoria do desconhecedor. Ganhamos pouco se nos limitarmos a substituir as velhas respostas pelas novas. O objetivo é desvencilharmo-nos por completo da dependência das respostas, de modo a perturbar o que tinha sido estabelecido e retomar um questionamento inocente que deixa toda a segurança para trás, cuja força não resulta das respostas mas do desconhecido.
A filosofia é uma atividade e não um corpo de conhecimentos. Como todas as atividades requer perícia. Que tipo de perícia? Em poucas palavras: a habilidade para nos vermos a nós próprios e ao mundo de muitas perspectivas diferentes.
O que é uma "perspectiva"? Uma perspectiva é, em termos aproximados, uma interpretação que vai para lá dos fatos e que se apóia nos pressupostos, convicções ou valores da pessoa que faz a interpretação. Por exemplo, eis um fato: um feto de três meses é intencionalmente abortado. De uma perspectiva, o aborto foi um assassínio. De outra perspectiva, não foi um assassínio. A primeira perspectiva assenta nos seguintes dois pressupostos: o feto era uma pessoa inocente, e a morte intencional de pessoas inocentes é um assassínio. A segunda assenta em dois pressupostos diferentes: o feto não era uma pessoa, na melhor das hipóteses era uma pessoa em potência, e a morte de pessoas em potência nem sempre é um assassínio.
No nosso dia-a-dia, desvencilhamo-nos perfeitamente bem ao apoiarmo-nos apenas nas nossas perspectivas. Mas mesmo no dia-a-dia, especialmente em alturas de conflito, a capacidade para abandonar nossas perspectivas em prol de outras pode ser extremamente útil. Em filosofia esta habilidade não é apenas útil, é essencial. Sem ela não podemos resolver problemas que são insolúveis no interior das nossas perspectivas habituais.
No fundo, sabemos que as nossas perspectivas não são as únicas perspectivas válidas. Mas tendemos a empurrar esse conhecimento para a periferia da nossa consciência. Isto deixa-nos com um sentimento ameaçador inconfortável, quando somos confrontados com pontos de vista contrários aos nossos. Quando admitimos que os nossos pontos de vistas assentam, em última análise, em pressupostos questionáveis e baixamos os nossos escudos contra pontos de vista externos, sentimo-nos inseguros. Na maior parte dos casos, não gostamos desses sentimentos. E assim deixamos convencer-nos a nós próprios de que os nossos pontos de vista são a única janela válida para a verdadeira realidade. E depois, quanto precisamos para ver além das limitações dos nossos pontos de vista, ficamos em dificuldades.
Obviamente, a solução é dissolver a cola que nos agarra aos nossos pontos de vista familiar. Essa cola é a ligação emocional. Para a dissolver, temos de, em primeiro lugar, reconhecer que todos confiamos muito mais em pressupostos questionáveis do que pensávamos. Em segundo lugar, temos de pôr de lado os nossos pressupostos e aprender a ver as coisas através de outros pontos de vista. Finalmente, precisamos integrar os insights que recolhemos destes pontos de vista diferentes e muitas vezes conflitantes.
Feche um olho e depois outro, várias vezes; irá notar uma mudança entre duas perspectivas planas conflitantes. Abra os dois olhos e as duas perspectivas tornam-se numa só visão tridimensional unificada. A integração de insights retirados a partir dos nossos pontos de vista familiares com insights retirados de pontos de vista conflitantes, mesmo que seja apenas a partir de um único, fornece-nos uma visão binocular — uma espécie de "percepção da profundidade filosófica" — que pode remover as limitações de pensar e viver num mundo "plano".
Ter um ponto de vista ajuda-nos a vermo-nos a nós mesmos e ao mundo. Mas se nos tornarmos demasiado apegados às respostas derivadas e apoiadas pelos nossos próprios pontos de vista, ficamos cegos para outros pontos de vista. Logo, ter um ponto de vista pode esconder tanto como aquilo que revela.
A filosofia mostra-nos como identificar as limitações dos nossos próprios pontos de vista. Mas faz mais: ensina-nos a sair de nós próprios, a atravessar as fronteiras dos nossos familiares sistemas de respostas.

Tradução de Célia Teixeira

Excerto retirado do livro Sabedoria Sem Respostas (Lisboa: Temas e Debates, 2004)

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Filosofia Analítica e Filosofia Transformadora
Por: Richard Rorty
Universidade de Stanford

Muitos filósofos analíticos não gostam de pensar na sua disciplina como uma das ciências humanas. Eles consideram como a marca própria da filosofia a busca disciplinada do conhecimento objetivo e, assim, pensam a filosofia como parecida com as ciências naturais. Eles vêem as ciências humanas como uma arena para discutíveis choques de opinião. Os filósofos deste tipo preferem ser colocados para fins administrativos, tão longe quanto possível de professores de literatura e tão perto quanto possível de professores de física.
É por isso que, nas mesas de organização das universidades americanas, os departamentos de filosofia às vezes são encontrados na Divisão das ciências sociais em vez de na Divisão das ciências humanas. Também esta é a razão pela qual os sitiados filósofos americanos não-analíticos às vezes tentam se reunir sob uma bandeira na qual inscreveram "filosofia humanística". Quando os analíticos e os não-analíticos irritam-se uns com os outros, os administradores acadêmicos às vezes tentam resolver o problema dividindo o departamento em dois – criando um departamento para os técnicos [techies] "analíticos" e outro para os superficiais [fuzzies] "não-analíticos".
O antagonismo entre a filosofia analítica e a não-analítica é tediosamente familiar, e isso para todos nós, os filósofos. Porém, referências a essa divisão freqüentemente confundem os não-filósofos. Eles não têm nenhuma idéia sobre o quão exagerado ela é. Eles estão bastante confusos sobre o que distingue a filosofia analítica de outras marcas, quais problemas os filósofos analíticos passam o seu tempo discutindo, e qual a razão pela qual os departamentos de filosofia americanos estão freqüentemente contentes em ter figuras como Hegel, Heidegger, Derrida e Foucault ensinadas em algum lugar na universidade (pelos cientistas políticos, ou os professores de literatura comparada, ou os historiadores das idéias, por exemplo).
Dedicarei a maior parte desta conferência à história e à sociologia da filosofia analítica no interior da academia americana. Isto fornecerá o pano de fundo para a minha afirmação de que os filósofos analíticos fracassaram completamente em fazer o que eles mais esperaram fazer: pôr a filosofia no caminho seguro de uma ciência. Mas concluirei dizendo que aqueles filósofos analíticos que muito fizeram para minar as pretensões científicas do movimento analítico, deram uma contribuição permanente, muito valiosa, para a filosofia. A moral da minha conferência será a de que tanto o fracasso da filosofia analítica quanto a história de sua autocrítica dá razões adicionais para abandonar, de uma vez por todas, a própria idéia de que a filosofia possa ser feita dentro de qualquer tipo de ciência. Ambos nos ajudam a substituir a suposição de que a filosofia deve acrescentar tijolos ao edifício do conhecimento pelo pensamento de que a filosofia é, como disse Hegel, o seu tempo apreendido no pensamento.
É dito freqüentemente que há uma "crise" nos departamentos de ciências humanas das universidades americanas. Mas as pessoas que dizem isto em geral têm em mente a excessiva correção política que ainda é, às vezes, encontrada nos departamentos de literatura nos EUA. Os departamentos de filosofia americanos tiveram sua última crise nos anos de 1940 e 1950 — o período durante o qual a filosofia analítica consumou a sua assunção do controle. Não houve nenhuma dramática mudança geral desde então, exceto pelo aparecimento súbito, nos anos 70, da filosofia feminista como uma nova área de especialização. Enquanto que o resultado do radicalismo dos anos 60 teve um impacto profundo em várias outras matrizes disciplinares na universidade, ele deixou a filosofia americana, em geral, da mesma forma. Muitos filósofos analíticos eram politicamente ativos, mas em geral esta atividade não os levou a mudar as suas auto-imagens profissionais ou seus hábitos de leitura.
A filosofia analítica pode, grosso modo, ser definida como uma tentativa de combinar a mudança da discussão sobre a experiência para tarefa de discutir a linguagem – que Gustav Bergmann chamou de "a virada lingüística" – como mais uma tentativa de profissionalizar a disciplina, tornando-a mais científica. A virada lingüística é comum a toda filosofia do século XX — como é evidente tanto em Heidegger, Gadamer, Habermas e Derrida quanto em Carnap, Ayer, Austin e Wittgenstein. O que distingue a filosofia analítica de outras iniciativas filosóficas do século XX é a idéia de que esta virada, junto com o uso da lógica simbólica, torna possível, ou pelo menos mais fácil, transformar a filosofia em uma disciplina científica. A esperança é que os filósofos se tornem capazes de, através da pesquisa paciente e cooperativa, acrescentar tijolos ao edifício do conhecimento. Assim, não mais haverá escolas filosóficas, mas unicamente especialidades filosóficas.
Antes da virada lingüística, Edmund Husserl tinha feito uma tentativa semelhante. Suas exortações à cientificidade e ao trabalho de equipe parecem muito com aquelas de Carnap e Reichenbach algumas décadas depois. Mas o Being and Time de Heidegger conseguiu empacotar pensamentos kierkegaardianos e nietzscheanos em um jargão que os fez parecer doutrinas filosóficas respeitáveis, antes que meras presunções literárias. Impondo uma forma quase kantiana, soando profissional, sobre um conteúdo kierkegaardiano e nietzscheano, Heidegger ajudou a tornar possível para os filósofos serem muito mais interessantes aos intelectuais literários do que qualquer pensamento que Carnap ou Husserl tenham se ocupado. Ele fundou assim a tradição que os filósofos analíticos se referem como "filosofia continental" — uma tradição que, nos EUA, é estudada em muitos departamentos de ciências humanas, mas normalmente não nos departamentos de filosofia.
Tanto Carnap quanto Husserl pensaram que Platão estava no caminho certo quando ele preferiu os matemáticos aos poetas. Mas considerando que a iniciativa de Husserl foi abafada no seu começo, por Heidegger, as esperanças de Carnap por cientificidade, e a sua suspeita de Heidegger e dos tipos literários que Heidegger tomava seriamente, estão bem vivas hoje nos departamentos de filosofia americanos. Tais esperanças e suspeitas ajudam a explicar o ultraje pomposamente ultraconservador e nacionalista exibido por muitos professores de filosofia americanos quando eles ficaram sabendo que a Universidade de Cambridge estava a ponto de oferecer para Derrida um título honoris causa.
Entre 1945 e 1960, a filosofia analítica assumiu a maioria dos departamentos de filosofia americanos importantes. Empiristas lógicos imigrantes como Carnap e Hempel substituíram Dewey e Whitehead como os heróis da geração mais jovem. Esta substituição produziu uma notável, minuciosa, mudança no currículo da graduação destes departamentos de filosofia e na auto-imagem dos PhDs que se formaram nesses departamentos.
Antes de a filosofia analítica assumir a hegemonia, o estudo da filosofia tanto em países anglófonos quanto em não-anglófonos tinha se centrado em torno da história da filosofia. Era esperado que qualquer pessoa, uma vez que tenha ensinado filosofia, pudesse falar sobre os méritos de Platão e Aristóteles, Hobbes e Spinoza, Kant e Hegel, Nietzsche e Mill.
É claro que isso não era tudo que se deveria considerar: também se tinha que tomar parte nos debates correntes nos periódicos. Mas ninguém naquela época período tinha qualquer dúvida de que a filosofia era uma das ciências humanas. Pois um treinamento avançado em filosofia não diferia totalmente em grande parte do treinamento avançado em literatura: a pessoa lê os textos canônicos, as visões desenvolvidas a respeito dos seus méritos relativos, e tenta articula-los em padrões novos e interessantes. Durante os anos quarenta, os professores universitários de literatura e história nos EUA, em geral tinham alguma idéia dos interesses e perspectivas dos seus colegas no departamento de filosofia, e reciprocamente. Até 1965, isto tinha deixado de ser o caso.
Como um estudante de filosofia, graduado nos anos 1950-54, me achei fascinado entre dois tipos bastante diferentes de professores: aqueles que, como McKeon e Hartshorne, esperavam que eu desenvolvesse visões sobre o que estava vivo e o que estava morto no pensamento de vários filósofos importantes e aqueles que, como Carnap e Hempel, esperavam que eu estivesse familiarizado com os artigos atuais dos periódicos: em particular, artigos centrados na tentativa de prover o que era então chamado de "reconstruções racionais" de várias partes da cultura — por exemplo, a prova de teorias científicas. Um dos tópicos que nós discutimos no seminário de filosofia da ciência de Hempel foi o Paradoxo do Corvo — o fato que relatos familiares da "lógica da confirmação científica" tinham uma conseqüência contra-intuitiva: a existência de qualquer coisa não-negra e não-corvo confirma a proposição que todos os corvos são negros.
Eu gastei alguns anos, e uma parte da minha dissertação meio que esquisofrênica, preocupado com um problema conexo: aquele da nomologicalidade. Uma generalização não-nomológica verdadeira tal como "Todas as moedas no meu bolso são prateadas" não permite a reivindicação contrafactual "Se este centavo estivesse no meu bolso ele seria prateado". Uma generalização nomológica verdadeira tal como "Todos os corvos são negros", por outro lado, permite a reivindicação contrafatual de que "Se este pássaro fosse um corvo, seria negro". Porém, é mais difícil do que alguém possa imaginar especificar o que faz uma generalização nomológica.
Minha dissertação era uma comparação entre três tratamentos do conceito de potencialidade: aqueles oferecidos por Aristóteles, pelos racionalistas do século XVII, e pela filosofia da ciência hempeliana/carnapiana. Assim eu gastei dois terços da pesquisa de minha dissertação lendo comentários sobre grandes filósofos mortos e a outra terceira parte lendo artigos recentes de periódicos que ofereciam novas e motivadoras análises de sentenças condicionais subjuntivas. Minha pesquisa da dissertação me deixou, se perdoarem uma metáfora desajeitada, encalhado entre a onda vazando e a maré subindo. Até que eu tivesse terminado com a graduação e o serviço militar, era 1958. Até lá, estava claro que se você não soubesse sobre filosofia analítica você não arrumaria um bom emprego. Parecendo um promissor jovem filósofo em Princeton, onde eu arrumei um trabalho em 1961, foi quase uma questão de exclusivamente falar o novo discurso – de acompanhar os periódicos correntes e entrar nos circuitos certos antes da publicação. Se você estivesse esperando conseguir estabilidade, como eu estava, havia uma pequena porcentagem de estar sendo notado historicamente.
Isto foi em parte por causa da influência de Willard van Orman Quine. Quine era o melhor estudante de Carnap, o arbiter elegantarium da filosofia analítica, e ego-ideal de todos. Ele era francamente desdenhoso em relação ao estudo da história de filosofia. Nos seus próprios anos de estudante, Quine tinha feito questão de ler tão pouco quanto possível dos textos canônicos, e ele recomendou esta prática aos seus estudantes em Harvard. Ele acreditou que a história da filosofia é tão irrelevante para a investigação filosófica atual quanto o é a história da física para a pesquisa atual naquele campo. Quine admirou Carnap por ter, quando convidado para lecionar um curso introdutório sobre Platão, respondido que ele não ensinaria Platão, porque não ensinaria nada exceto a verdade.
Atitudes quineanas deste tipo eram difundidas em Princeton. Os estudantes de Princeton, de modo obediente, competiam uns com outros em habilidade argumentativa e agudez dialética, em vez de adquirirem uma ampla gama de saber. Nós dispensamos um de nossos mais inteligentes estudantes da exigência do idioma estrangeiro pela razão de que seria injusto deixar uma idiossincrática inaptidão genética – carência de senso idiomático [Sprachgefuehl] – retardar a brilhante carreira que este estudante estava destinado a ter (e que, de fato, ele veio a ter). Nenhuma compaixão semelhante teria sido mostrada por um estudante que reivindicasse que seus genes tornaram impossível para ele dominar a lógica simbólica. Próximo do fim de meu tempo em Princeton, em torno de 1980, o departamento de filosofia aboliu completamente a exigência do idioma estrangeiro para os estudantes graduados. Aquele passo teria sido inconcebível trinta anos antes (e foi, de fato, depois revogado).
Até 1980 a diferença entre estudantes treinados em departamentos de filosofia anglófonos do tipo de Harvard/Princeton e aqueles treinados na França, Alemanha, Itália, Espanha e muitos outros países europeus (fora da Grã-Bretanha e Escandinávia) tinha ficado realmente muito grande. Os estudantes posteriores conheceram tipicamente Hegel e Heidegger razoavelmente bem. Eles tiveram visões sobre os méritos relativos dos principais relatos histórico-intelectuais [geistesgeschichtlich] que esses dois homens contaram, e também sobre como entrelaçar tais histórias com várias histórias igualmente formidáveis a respeito da história da arte e literatura, por um lado, e a história das instituições sociais e políticas, por outro. Alguns estudantes anglófonos também tinham lido estes dois filósofos e imaginaram histórias semelhantes, mas tais estudantes eram atípicos, e freqüentemente marginalizados. Novamente, alguns estudantes em países não-anglófonos estavam intensamente interessados em filosofia analítica, e preparados para seguir o conselho de Quine sobre ignorar a história da filosofia. Mas eles também eram atípicos, e freqüentemente marginalizados.
A maioria destas profundas diferenças persiste hoje. Ainda há uma grande diferença entre os jovens que aspiram se tornar professores de filosofia nas partes anglófonas e não-anglófonas do mundo. A maior diferença está nas suas discrepantes noções do que significa ser um filósofo – na auto-imagem e nas ambições que um avançado estudante da matéria adquire. É esta diferença que torna muito improvável que haverá uma aproximação entre a tradição analítica e uma tradição que treina os estudantes conduzindo-os pela canônica seqüência de Platão a Nietzsche.
Entre os filósofos anglófonos, a mera habilidade argumentativa – da espécie típica de litigantes forenses – importa muito. Ainda é muito importante ser o que meus colegas de Princeton chamavam de "rápido de cabeça". Por outro lado, em outro lugar, é ainda mais importante ter aprendido – ter lido muito, e ter visões sobre como articular as várias coisas que leu para formar algum tipo de relato, uma história que esboça uma moral. É por isto que os estudantes não-anglófonos de filosofia no continente, normalmente têm pouco problema conversando com, e sendo inquirido por, estudantes de literatura e história. Os estudantes de filosofia graduados nos EUA têm freqüentemente um problema fazendo isto.
O anti-historicismo da filosofia analítica, porém, não impediu o estudo da história da filosofia de produzir algo com algum retorno nos EUA. Há mais trabalho de primeira categoria sendo feito nesta área por filósofos americanos hoje em dia do que há vinte anos. Mas é tipicamente um trabalho que evita a história intelectual [Geistesgeschichte]. Antes, ele se fixa em uma figura particular ou período, e não aponta nenhuma moral histórico-mundial. Têm poucas pontas de contato com as preocupações das pessoas que levam a sério àquelas histórias de Hegel e Heidegger sobre a seqüência de Platão a Kant.
Este estudo da história de filosofia é, contudo, igualmente afastado, porém, das preocupações das supostas áreas "centrais" da filosofia analítica. Ele deve muito pouco à filosofia analítica, e é contínuo com o trabalho histórico feito antes de Russell e Carnap proporem a mudança de paradigma que revolucionou a filosofia anglófona. Os historiadores da filosofia nos departamentos de filosofia americanos são, por assim dizer, "analíticos" só por cortesia. Considerando que no primeiro rubor de entusiasmo analítico havia algumas desajeitadas tentativas para tornar Aristóteles um tipo de proto-Russell ou proto-Austin, e para tornar Kant um misturado proto-Strawson, hoje em dia existe freqüentemente pouca diferença entre os comentários sobre textos canônicos escritos por professores de filosofia e aqueles escritos por cientistas políticos ou historiadores das idéias.
Assim como ocorre com a história da filosofia, também ocorre com a moral e a filosofia política. John Rawls teria escrito o mesmo livro até mesmo se Russell e Carnap nunca tivessem vivido, e até mesmo se a virada lingüística nunca tivesse sido obtida. Na medida em que autores como Rawls ou Charles Taylor ou Peter Singer usam "métodos", eles são os mesmos "métodos" usados por Sidgwick, Mill e T. H. Green. A virada lingüística não fez nenhuma diferença às suas investigações. O único efeito que o domínio da filosofia analítica teve sobre estes campos foi banir a história da filosofia, a ética e a filosofia política para as margens do currículo filosófico. A posição central nos departamentos de filosofia americanos está agora ocupada pelo que seria o "núcleo" de especialidades – a metafísica, a epistemologia, a filosofia da linguagem e a filosofia da mente.
A suposta centralidade destas áreas encoraja os estudantes a pensar no trabalho em outras áreas da filosofia como fraco [soft] e tímido. O "núcleo" forte [hard] consiste precisamente no trabalho que não só é bastante diferente de qualquer coisa feita por professores em literatura ou história, mas cujo objetivo é obscuro a qualquer um que não é um filósofo por profissão. O status de "núcleo" deste trabalho é devido ao fato de que este contém a parte da filosofia que ainda parece oferecer esperança de alcançar resultados definitivos, quase-científicos – de atingir conhecimento, ao invés de mera opinião.
Para se acostumarem com o tipo de coisa que os filósofos analíticos do núcleo-forte tomam seriamente, considerem o seguinte exemplo. Foi mostrado por Edmund Gettier em 1962 que havia uma falha na definição tradicional de conhecimento como crença verdadeira justificada – a definição trazida à baila primeiro por Platão. Gettier notou que você pode ter uma crença verdadeira justificada que, não obstante, não contaria como conhecimento, simplesmente porque foi causada na via errada – causada por eventos irrelevantes. Por exemplo, se eu acredito que alguém em meu departamento possui agora um BMW, porém acredito ser Jones, que me falou no mês passado que possui um, então eu posso ter uma crença verdadeira justificada. Mas, porque Jones vendeu o seu BMW ontem, minha crença só é verdadeira porque foi outro de meus colegas departamentais, Smith, que o comprou de Jones. Porque minha crença justificada foi causada pela coisa errada, por assim dizer, que eu não sei que um colega possui um BMW, embora um deles de fato possua, e embora minha crença de que um deles possua esteja justificada.
A observação de Gettier deu origem ao que é chamado de "teorias causais do conhecimento". Tais teorias tentam especificar que tipo de ligação causal se obtém entre sujeitos e objetos do conhecimento empírico. Aqueles interessados por tais teorias continuarão a discutir se tais ligações existem também nos casos do conhecimento matemático e moral. Tais investigações conectam-se com Kripke – inspiradas pelas teorias causais de referência. Estas são teorias sobre como o que nós estamos falando não é determinado pelo que nós dizemos a respeito, mas antes por ligações causais entre nosso uso de certas palavras e as coisas cujas palavras foram originalmente usadas para nomear.
Há muito debate entre os filósofos analíticos sobre o valor de tais teorias – sobre se nós precisamos ou de uma teoria do conhecimento ou de uma teoria de referência, sobre se a descoberta de Gettier é de qualquer interesse filosófico, sobre se as teorias causais podem funcionar, e sobre para que elas poderiam servir se funcionassem. Mas é esperado que um estudante que quer ser filósofo analítico tenha seu entendimento sobre todos estes tópicos, se estiver unicamente seguro de passar na seção de "epistemologia e metafísica" do exame de qualificação do Ph.D. Você ganhará mais evidência em minha profissão por ter um relevante novo argumento para estes tópicos, do que adquiriria, por exemplo, publicando uma abrangente história da filosofia moral na Europa de Montaigne a Kant.
Uma tal história foi publicada alguns anos atrás por Jerome Schneewind, que ensina filosofia na Universidade Johns Hopkins. Cinqüenta anos atrás, quando Lovejoy, Jaeger, Cornford, Gilson, Wolfson, e Kemp Smith, ainda eram nomes para se invocar por meio de um longo, erudito, original e imaginativo trabalho na história da filosofia, como o The Invention of Autonomy de Schneewind, teria sido anunciado como uma das mais importantes contribuições recentes da América para a filosofia. Porém, hoje em dia, ele provavelmente achará mais leitores fora dos departamentos de filosofia. A maioria dos professores americanos de filosofia permanecerá desavisada de sua existência.
A razão principal para esta distribuição de prestígio é, uma vez mais, que os filósofos analíticos gostariam, acima de tudo mais, de sentir que eles estão acrescentando tijolos ao edifício de conhecimento. Os filósofos analíticos não suspeitam, é claro, dos historiadores como suspeitam dos críticos literários. Porque eles reconhecem que os historiadores que se limitam a averiguar quais eventos de fato aconteceram oferecem conhecimento em lugar de mera opinião. Mas porque os historiadores de filosofia como Lovejoy ou Schneewind se preocupam com tendências antes do que com eventos, eles são freqüentemente classificados como mercadores de opinião. Eles são considerados mais parecidos com críticos literários do que com filósofos verdadeiros, como os filósofos profissionais devem parecer.
É por isto que contar uma história sobre tendências é um convite à próxima geração de historiadores das idéias para contar outra história, competidora, sobre as mesmas tendências, da mesma maneira que fixar um cânone literário convida a próxima geração de críticos a revisar esse cânone. Por contraste, a explicação de um fenômeno físico macroestrutural por referência a detalhados planos microestruturais, tipicamente não convida a próxima geração a oferecer uma explicação competidora. Com respeito à explicação anterior se está freqüentemente de acordo com a idéia de ter acrescentado um tijolo ao edifício do conhecimento, tornando desnecessário revisitar aquela mancha na parede. Esse sentido de definição e finalidade é que filósofos analíticos anseiam. Tal sentido não é obviamente realizável por um livro como o de Schneewind.
O contraste entre a filosofia analítica e a não-analítica, aproximadamente, se iguala com o contraste de C. P. Snow entre a cultura científica e a literária – o contraste forte-fraco [hard-soft], ou técnicos-superficiais [techie-fuzzie], que mencionei anteriormente. A maioria das pessoas que participam do que os filósofos analíticos chamam "filosofia continental" está disposta a, e freqüentemente ansiosa para, não distinguir os limites entre filosofia, história das idéias, literatura, crítica literária, e crítica da cultura. Elas são relativamente indiferentes aos resultados das chamadas ciências fortes. Eles vêem toda razão em por que os professores de filosofia deveriam ler o The New York Review Of Books e pouca razão em por que eles deveriam assinar a Scientific American.
O leitor típico de Heidegger e Derrida vê as ciências hard antes como coadjuvantes do progresso tecnológico do que como provendo janelas pelas quais de pode olhar, rapidamente, a realidade desvelada. Um tal leitor concordará com Kierkegaard e Nietzsche que Platão e Aristóteles estavam enganados em pensar que a busca da verdade objetiva é o que mais vale a pena, e a atividade mais distintamente humana da qual somos capazes. A maioria desses leitores concordará com Nietzsche que o que os filósofos gregos perderam foi a prioridade da arte e da literatura para a ciência e a matemática – a necessidade de ver a ciência pela ótica da arte e da vida. Platão imaginou uma educação centrada na ciência, enquanto que Nietzsche imaginou uma cultura centrada na arte, na qual nós reconhecemos que os poetas determinam nossos fins, e que os cientistas somente produzem meios para realizar estes fins.
Esta linha de pensamento é bem resumida pela insistência de Kierkegaard de que o que nós chamamos "conhecimento objetivo", seja de teoremas matemáticos ou de fatos físicos ou da ocorrência de eventos históricos é conhecimento meramente "acidental". Os tijolos que compõem o edifício do conhecimento humano são irrelevantes para o único propósito que realmente importa. Esse propósito é transformar o que Kierkegaard chama "o existir individual". "Todo o conhecimento", Kierkegaard escreve, "que não se relaciona intimamente com a existência, na reflexão da interioridade, é, essencialmente, considerado, conhecimento acidental; seu grau e extensão são essencialmente indiferentes... Só o conhecimento ético-religioso tem uma relação essencial com o cognoscente".
O caso paradigmático de transformação existencial para Kierkegaard é se tornar um Novo Ser em Cristo. Mas este não é obviamente o único exemplo de obtenção do que Heidegger chamou existência autêntica – uma vida cujas metas simplesmente não são tomadas da cultura ou tradição da pessoa, mas que são o resultado de um idiossincrático, alienante e extático encontro com algo ou alguém novo. Este é o tipo de encontro que Platão teve com Sócrates, Pico della Mirândola com Platão, Romeu com Julieta, Hitler com Wagner, Quine com Carnap, Harold Bloom com Blake, e muitos jovens idealistas com movimentos sociais como o marxismo, o feminismo, o fascismo, e a liberação gay.
Claramente, nem todo mundo nas ciências humanas está procurando transformação existencial. Nem todos os professores de filosofia são não-analíticos. Mas a existência do fenômeno de transformação existencial é tão importante para as ciências humanas quanto o fenômeno do consenso entre peritos é para a cultura científica. Se não houvesse tal fenômeno, não haveria nenhuma cultura literária, da mesma maneira que não haveria nenhuma cultura científica se atingir consensos não fosse um produto familiar e esperado do conduzir experiências de laboratório.
Isto não significa que os produtos principais dos departamentos de ciências humanas são livros que efetuam transformação existencial. Antes, os produtos principais destes departamentos são contribuições para a história intelectual [Geistesgeschichte]: histórias sobre transformações passadas, especialmente narrativas que conectam muitas transformações sucessivas em auto-imagens individuais e sociais. Estes relatos são sobre, por exemplo, quanto os gregos obtiveram de Homero a Aristóteles, quanto a crítica literária obteve do Dr. Johnson a Harold Bloom, quanto a imaginação alemã obteve de Schiller a Habermas, quanto o protestantismo obteve de Luther a Tillich, e quanto as feministas obtiveram de Harriet Taylor a Catherine MacKinnon. Estas narrativas nos falam como os seres humanos conseguiram mudarem as suas mais importantes autodescrições. Todas estas narrativas são eternamente contestáveis, e eternamente revisáveis sob a luz de mudanças mais recentes. Assim, a própria idéia de um relato histórico último, definitivo de quaisquer destas transições é tão tola quanto a idéia de um romance de formação [Bildungsroman] último, definitivo.
Tais narrativas, quando tecidas em articulação umas com as outras, e com o próprio romance de formação [Bildungsroman] não escrito de um leitor, oferecem a esse leitor um sentido do que Hegel chamou o curso do Espírito do Mundo. Livros que tecem muitas narrativas semelhantes em conjunto, e que encravam uma moral dentro do desígnio da tapeçaria resultante, executam a tarefa que Hegel chamou "apreender nosso tempo no pensamento". Essa frase foi uma das muitas definições hegelianas de filosofia. Parece-me uma definição plausível do que os departamentos de ciências humanas de nossas universidades esperam fazer por seus estudantes. Contando histórias sobre encontros transformadores passados, os membros destes departamentos esperam pôr seus estudantes em uma posição melhor para terem encontros similares aos seus próprios encontros, alguns dos quais podem ajudar a impulsionar o Espírito do Mundo.
Apreender o próprio tempo no pensamento é para as ciências humanas o que o solucionar quebra-cabeças é para as ciências. Uma das principais satisfações de ser um cientista natural, mesmo um cientista natural de uma liga menor, é que você pode resolver um quebra-cabeça, ou pelo menos um quebra-cabeça secundário, de uma vez por todas. Um grande cientista é alguém que resolve um grande e importante quebra-cabeça, existente há muito – por exemplo, por que os planetas se movem em elipses, ou a microestrutura da radioatividade, ou a realização física da codificação genética. Um cientista natural formidável pode resolver quebra-cabeças de um certo modo que transforma todo nosso sentido de como as coisas funcionam. É por isto que Einstein às vezes é chamado de "filósofo-cientista". A sua realização se conforma com a definição de Wilfrid Sellars de filosofia como um relato de como as coisas, no sentido amplo do termo, se sustenta, no sentido amplo do termo.
Mas um filósofo formidável, alguém como Platão ou Hegel, pode fazer o mesmo tipo de coisa que Einstein fez. Também o pode um escritor religioso formidável como Kierkegaard ou um poeta formidável como Shakespeare. As coisas que são feitas para se sustentarem em um modo novo são diferentes, mas a grandeza é comparável. No caso científico as coisas relevantes são objetos não-humanos (inclusive partes de seres humanos como neurônios ou genes). Nas ciências humanas, elas são coisas humanas – instituições humanas, vidas, traços característicos, realizações, e assim por diante. Grandes, mas não muito grandes, historiadores, críticos literários, e filósofos se colocam em relação a pessoas como Kant e Shakespeare, como comuns laureados pelo Nobel em física se colocam em relação a Einstein. Eles não efetuam transformações, mas eles facilitam o próximo círculo de tais transformações. Enquanto que os físicos constroem a próxima transformação resolvendo quebra-cabeças, os humanistas a constroem contando histórias sobre como transformações passadas se sustentam ou não.
Comte e Marx, por exemplo, estavam tentando apreender o seu tempo no pensamento quando da confecção de narrativas retrospectivas em defesa de suas respectivas sugestões sobre como poderiam ser corrigidas as desigualdades cruéis que tinham sobrevivido mesmo após a Revolução Francesa. Assim foi com os humanistas do Renascimento quando eles ofereceram sugestões sobre o que a cristandade poderia se tornar, agora que éramos capazes de destinar a sabedoria dos antigos.
Os maiores filósofos não-analíticos de nosso século, Dewey e Heidegger, gastaram muito de seu tempo contando histórias sobre o declínio e sobre o progresso, histórias que conduziram seus leitores a re-conceber a si mesmos e a suas cercanias. As re-concepções potencialmente transformadoras que estes dois homens ofereceram, obviamente não podem ser descritas como nos proporcionando novo conhecimento. Todavia evocar essas sugestões para mudança de opinião é igualmente enganador. Para aqueles que seguem Kierkegaard, distinguindo o existencial e importante do objetivo e relativamente trivial, é correto ignorar questões sobre consenso e certeza. Eles também têm razão em não ter nenhum interesse na distinção conhecimento-opinião. Quando alguém troca de profissões, cônjuges, amantes ou religiões, o mesmo igualmente não pergunta por certeza ou consenso relativo a legitimidade de sua escolha. Nem está em questão também dizer quando escolher entre a narrativa otimista de Dewey de nossa ascensão à democracia social e a narrativa pessimista de Heidegger de nossa derrocada para o descuidado gigantismo tecnológico.
Para ilustrar a diferença entre um tipo de filosofia centrada na história, que não tem nenhum problema a respeito de sua relação com as outras ciências humanas e o tipo de filosofia que considera a história supérflua, deixe-me recorrer a Schneewind, cujo livro eu mencionei anteriormente. Em um seminário que cobria o material do livro, um estudante que estava confuso pela sua abordagem, perguntou ansiosamente para Schneewind: "Mas você acredita, não é, que há um corpo de conhecimento moral objetivamente correto, o qual os filósofos morais estão se aproximando asintoticamente?". Quando Schneewind disse que ele não acreditava em nada do tipo, o estudante estava genuinamente perplexo sobre o que era considerado relevante para se escrever uma história da filosofia moral. Esta perplexidade não teria sido, eu suspeito, encontrada em um estudante de filosofia americano de cinqüenta anos atrás.
Eu cito este episódio para sugerir o quão profundamente enraizado na cultura da filosofia analítica está o ideal de busca da verdade sem limite de tempo e não-revisada. Se você tiver este ideal diante de você, o que acontece nos departamentos de literatura e história é na certa visto em comparação com algum possível ponto filosófico. Inversamente, se você concorda com Kierkegaard que o conhecimento de tais verdades é trivial em comparação com a transformação "ético-religiosa", então você terá pouco interesse em filosofia analítica. Porque a maioria dos leitores de filosofia concorda com Kierkegaard, e a filosofia analítica tem poucos leitores fora dos departamentos de filosofia anglófonos. A maioria dos outros professores em universidades nem sabem nem se preocupam sobre o que acontece no departamento de filosofia. Na medida em que eles pensam nisto tudo, eles repudiam esse departamento como tendo sido tomado por "técnicos" cujo trabalho não é de nenhum interesse para não-especialistas.
Muitos filósofos analíticos acompanhariam a visão de filosofia trazida à baila por David Lewis, um dos mais respeitados e admirados filósofos americanos contemporâneos. Seu sistema erigido e suas habilidades para resolver quebra-cabeças, como também a sua agudeza argumentativa, são invejados por seus colegas. Mas ele tem tão pouco interesse na história da filosofia, que seus estudantes estão familiarizados com esta história, quanto tinha seu professor Carnap. Lewis escreve que "Uma pessoa já vem para a filosofia dotada de um estoque de opiniões existentes. Não é o negócio da filosofia minar ou justificar estas opiniões, em qualquer ampla extensão, mas só tentar descobrir modos de ampliá-las em um sistema metódico. Uma análise metafísica da mente é uma tentativa de sistematizar nossas opiniões sobre ela. Sucede que a extensão (1) é a sua sistemática, e (2) ela respeita aquelas nossas opiniões pré-filosóficas, as quais estamos firmemente ligados" (Lewis, Counterfactuals, p. 88).
Filósofos que concordam freqüentemente com Lewis têm pouca paciência com aqueles que, como Kierkegaard, esperam que a leitura de um livro de filosofia pode, minando ou justificando nossas opiniões atuais, permitir a autotransformação. A reivindicação de Kierkegaard de que só o ético-religioso realmente importa é a antítese da perspectiva de Lewis daquilo para o qual a filosofia serve. A diferença entre os dois homens é, como já sugeri, a diferença entre narrar histórias, especialmente histórias de redenção ou de declínio, e resolver quebra-cabeças.
Lewis é o arquetípico resolvedor de quebra-cabeças filosóficos. Suas soluções para os quebra-cabeças são brilhantes e originais, e elas se ajustam em um sistema verdadeiramente belo. Mas aqueles que pensam que a filosofia deveria se concentrar em dissolver quebra-cabeças tradicionais em lugar de resolvê-los, tipicamente pensam assim porque esperam que tal dissolução nos ajude a substituir um jargão gasto por um modo de falar e pensar novo, transformador. Tais pessoas verão o sistema erigido por Lewis como tendo valor meramente estético. O tipo de filósofo que Heidegger acha útil, precisamente devido a sua tentativa de se livrar de todas as pressuposições comuns a Platão e a filosofia analítica, é especialmente adequado para assumir esta visão.
Se a filosofia analítica for reter qualquer esperança de realizar seu sonho de cientifização e completa profissionalização, então deve haver significados que permanecem fixos apesar das mudanças de uso, e intuições que permanecem lugar-comum apesar da mudança cultural. Essencial para este movimento é que o historicismo tenha seus limites – que nem todo modo de falar e pensar esteja disponível (para ser arrebatado), que nem todo problema filosófico seja um candidato para dissolução terapêutica. Pois se todos os modos de falar e pensar são potencialmente substituíveis, então os analíticos solucionadores de quebra-cabeças sempre estarão em perigo de perceberem a si próprios como paroquiais, temporalmente limitados e obsoletos.
Esta é a razão principal por que, dentro da filosofia analítica contemporânea, o holismo, o contextualismo, o pragmatismo e o historicismo são vistos com tanta suspeita. Pois quanto mais os significados, os conceitos e as intuições parecem estar à mercê de história, menos esperança há de que a filosofia atingirá algum dia o caminho seguro de uma ciência. O historicismo na filosofia é o principal inimigo da profissionalização. O medo da desprofissionalização veio desempenhar, entre os filósofos analíticos, um papel considerável na escolha de visões filosóficas substantivas.
Eu mesmo sou um convicto holista, historicista, pragmatista e contextualista. Não acredito que existam quaisquer pequenas pepitas analisáveis chamadas "conceitos" e "significados" do tipo que a descrição do trabalho dos filósofos analíticos requer. Meu primeiro impulso, ao ser informado de um quebra-cabeça filosófico, é tentar dissolvê-lo em vez de resolvê-lo: eu tipicamente questiono os termos nos quais o problema é colocado, e tento sugerir um novo conjunto de termos, termos nos quais o suposto quebra-cabeça é insustentável.
Este tipo de comportamento pode responder pelo fato de que eu sou freqüentemente caracterizado como um filósofo do "fim-da-filosofia". Mas eu não sou. A filosofia não pode possivelmente terminar a menos que as mudanças culturais terminem e, além disso, como todo mundo, eu espero que tais mudanças continuem. Dadas as mudanças culturais, sempre haverá pessoas que tentam pôr o velho e o novo juntos. Platão tentou pôr as melhores características dos olimpianos de Hesíodo junto com as melhores características da geometria axiomática, Aquino tentou pôr Aristóteles junto com a Bíblia. Dewey tentou pôr Hegel junto com Darwin, Annette Baier tenta pôr Hume e Harriet Taylor junto com Freud.
Todas estas pessoas são apropriadamente chamadas de filósofos, tanto na definição de Sellars quanto na de Hegel. Todos eles estavam tentando fazer coisas humanas se sustentarem em uma ampla, e definitiva maneira, e também apreender pelo pensamento as suas épocas que estavam mudando rapidamente. A razão pela qual a filosofia sempre enterra seus empreendedores não é a que haja quebra-cabeças permanentes e profundos que surgem como caixas de surpresa em cada época e em cada cultura, mas simplesmente que os tempos continuam mudando. Tal mudança sempre torna difícil ver como as coisas se sustentam, porque nos força a descrever fenômenos novos em termos que foram projetados para usar em fenômenos velhos. Os filósofos úteis são aqueles que imaginam termos novos, e assim tornam obsoletos os vocabulários velhos. A invenção de tais termos não pode se tornar o objetivo de um programa de pesquisa científica. Assim, o que espero que se acabe é a tentativa de fixar a filosofia no caminho seguro de uma ciência.
Porém, se tais tentativas terminarem, a filosofia analítica não será considerada como tendo sido um desperdício de tempo. Pelo contrário, eu acredito que eles verão a filosofia analítica como tendo produzido poderosas novas considerações a favor do historicismo e contra o cientificismo. Nada convém tanto à filosofia analítica quanto sua constante autocrítica – seu hábito de interferir sem parar em seus próprios fundamentos, colocando suas próprias pretensões em questão. A receptividade para tal autocrítica também permitiu a filósofos analíticos como Kuhn e Putnam formular críticas mais profundas do que qualquer uma que tenha sido produzida fora do movimento analítico, às tentativas de Russell e Carnap de basear a filosofia em um fundamento científico. A reação contra o positivismo lógico que dominou a filosofia analítica durante os últimos quarenta anos não deveria ser vista como uma tempestade em uma chaleira anglófona, mas como uma contribuição significativa para a filosofia mundial.
Se os historiadores forem apreciar a magnitude das realizações da filosofia analítica, eles fariam bem em ignorar o auto-serviço retórico que os filósofos analíticos infelizmente continuam empregando. Eles podem seguramente desprezar a reivindicação de que a filosofia analítica exibe um incomum, e talvez sem precedente, grau de claridade e rigor. Eles deveriam prestar atenção, ao invés, na dialética interna da filosofia analítica. Graças ao que Hegel chamou "a astúcia da razão", esta dialética permitiu aos filósofos analíticos explicar mais claramente do que antes por que claridade e rigor são relativos a circunstância cultural.
Nos estranhos anos quarenta, desde que filosofia analítica assumiu a hegemonia, mais nenhum acordo foi alcançado entre os filósofos analíticos americanos do que o que foi alcançado entre os filósofos neokantianos na Alemanha durante a segunda metade do século dezenove, ou entre os filósofos americanos pré-analíticos que discutiram os méritos relativos de James, Russell, Bradley, Whitehead e Bergson. A tentativa de Russel-Carnap de usar a lógica simbólica para pôr a filosofia no caminho seguro de uma ciência foi um fracasso tão completo quanto o foi a tentativa de Husserl de usar a epochê fenomenológica para aquele propósito. Os filósofos analíticos são tão rápidos em se dividir em escolas, cada uma repudiando a importância da outra, como o foram os escolásticos no século XIV.
É difícil evitar este tipo de escolasticismo quando uma profissão não tem responsabilidades exceto para com si mesma. O que conta como um problema real em, por exemplo, jurisprudência, é uma questão sobre a qual a sociedade como um todo tem opiniões. Mas a sociedade não tem nenhuma opinião sobre o que conta como um problema filosófico. É por causa disso que, desde que a filosofia se tornou profissionalizada, no tempo de Kant, os filósofos gastaram pelo menos metade de seu tempo explicando por que os problemas de seus colegas são irreais.
O que uma pessoa adquire, enquanto um estudante graduado em um departamento de filosofia analítica, não é um conjunto de métodos ou ferramentas, mas simplesmente familiaridade com os vários jogos-de-linguagem que são jogados pela faculdade daquele departamento. Estes são jogos-de-linguagem que podem bem ser vistos com desprezo pelos filósofos analíticos na próxima universidade rua abaixo. Não obstante, a familiaridade com tais jogos-de-linguagem é o que constitui iniciação na profissão. A respeito disto, o treinamento graduado é precisamente o mesmo processo para estudantes de David Lewis ou Donald Davidson como para estudantes do outro lado do abismo – discípulos de Albrecht Wellmer ou Gianni Vattimo, por exemplo. Em todos os quatro casos, você adquire o que os desconfiados não-filósofos [outsiders] chamam de jargão inútil e que os convictos filósofos [insiders] chamam de ferramentas indispensáveis.
Quando em 1950 eu, admirado, me sentei aos pés de Carnap, realmente acreditei que ao final do século XX os filósofos ao redor do mundo estariam aprumando seus artigos com quantificadores, falando a mesma linguagem idealmente perspicaz, tentando resolver os mesmos quebra-cabeças, acrescentando tijolos ao mesmo edifício. Mas durante meus anos em Princeton, sentindo os ventos da doutrina mudar de direção, e os novos e urgentes quebra-cabeças filosóficos dos últimos anos murchar e morrer em uma rajada, percebi que este enredo provavelmente não seria terminado até mesmo em uma única universidade, e muito menos em uma escala global. Todavia, a compreensão de que meus colegas de Princeton não mais concordavam sobre quando um tijolo tinha sido acrescentado ao edifício do conhecimento, tanto quanto sobre o que contava como um problema filosófico importante não diminuiu minha convicção crescente de que o melhor dos filósofos analíticos fez muito para a transformação da auto-imagem humana.
Em vários livros e artigos eu tentei contar uma história a respeito de como a virada lingüística na filosofia tornou possível para os herdeiros de Kant chegar a um acordo com Darwin e encorajou uma linha de pensamento anti-representacionista que bate com o perspectivismo de Nietzsche e com o pragmatismo de Dewey. Esta linha de pensamento, traspassando o último Wittgenstein, como também o trabalho de Sellars e Davidson, nos deu um modo novo de pensar sobre a relação entre a linguagem e a realidade. Pensando deste modo é possível, finalmente, fazer o que os idealistas alemães esperaram inutilmente fazer: poder nos persuadir a terminar a discussão de pseudoproblemas cansativos sobre a relação do sujeito e objeto, e da aparência com a realidade.
Estes filósofos analíticos, eu argumentaria, podem nos ajudar a pôr a filosofia de volta no caminho hegeliano, historicista e romântico. Este é o caminho que os neokantianos do século XIX, os fenomenólogos husserlianos e os fundadores da filosofia analítica esperaram bloquear. Trata-se da história, que eu procurei contar em outro lugar, sobre como a filosofia analítica tentou e fracassou em evitar a tomada do caminho que culmina na reivindicação de que os seres humanos podem, com a ajuda de Wittgenstein, Sellars e Davidson por um lado, e Heidegger, Foucault e Derrida por outro, fugir da velha idéia de que há algo fora dos seres humanos – algo como a Vontade de Deus, ou a Natureza Intrínseca da Realidade – que tenha autoridade sobre as crenças e ações humanas. É uma história sobre como certas intuições que nós herdamos dos gregos podem ser minadas e substituídas, em vez de sistematizadas. Se não aceitar ou não gostar de tal história, é uma história de transformação, uma história do tipo que Kierkegaard poderia reconhecer como tendo significação ético-religiosa (embora sua significação seja radicalmente ateística).
Em resumo, minha história não é a respeito de como evitar a filosofia analítica, mas antes sobre porque você precisa estudar certos filósofos analíticos selecionados para apreciar plenamente as possibilidades transformadoras que os movimentos intelectuais do século XX abriram para nossos descendentes. A matriz disciplinar da filosofia analítica, apesar da retórica defensiva oca com que ela ressoa, é algo com que futuros historiadores das idéias terão que se familiarizar, da mesma maneira que eles tiveram que se familiarizar com a matriz disciplinar do idealismo alemão.
O idealismo alemão também produziu muita retórica cientificista oca, mas empurrou o Espírito do Mundo junto. Assim, como eu argumentei, é a linha de pensamento holista e contextualista que conduziu Wittgenstein do Tractatus para as Investigations, que persuadiu Quine a escarnecer da distinção analítico-sintético, que levou Sellars a abandonar a idéia lockeana de consciência pré-lingüística e fez Davidson repudiar a idéia efetiva de um esquema conceitual.
Os estudantes de história da filosofia no século XXII, eu predigo, terão que lutar diretamente contra os detalhes técnicos que cobrem de lixo este treinar do pensamento, da mesma maneira que os estudantes de hoje têm que lutar diretamente contra os detalhes técnicos da Critique of Pure Reason de Kant. Por toda a sua pretensiosa arquitetônica e suas soluções ao estilo Rube Goldberg de pseudo quebra-cabeças insensatos, o livro de Kant mostrou ter efeitos ético-religiosos transformadores. Nós pensamos diferentemente a respeito de nós mesmos devido ao que Kant escreveu. Por todas as suas pretensões pseudo-científicas, e apesar dos becos sem saída incontáveis nos quais se apoiou, a filosofia analítica do século XX também terá efeitos transformadores, e assim nossos descendentes estarão em débito para com ela.
A filosofia analítica pode não ter cumprido suas pretensões, e pode não ter resolvido os quebra-cabeças que pensou ter. Contudo, o processo de achar razões para apartar essas pretensões e esses quebra-cabeças ajudou a filosofia analítica a ganhar para si mesma um lugar importante na história das idéias. Desistindo da busca por apoditicidade e finalidade que Husserl compartilhou com Carnap e Russell, e achando novas razões para pensar que aquela busca nunca terá sucesso, clareou um caminho que nos conduz ao cientificismo passado, da mesma maneira que os idealistas alemães clarearam um caminho que nos conduziu ao redor do empirismo. A lição antiempirista do idealismo alemão levou muito tempo para ser aprendida, e o mesmo pode ocorrer com a lição anticientificista da filosofia analítica. Mas algum dia os historiadores das idéias serão capazes de ver estes movimentos aparentemente contrários como complementares.

Richard Rorty

Tradução de Heraldo Aparecido Silva

Tradução originalmente publicada no Portal Brasileiro da Filosofia sem indicação da fonte original

O que é a filosofia?
Nigel Warburton

O que é a filosofia? Esta é uma questão notoriamente difícil. Uma das formas mais fáceis de responder é dizer que a filosofia é aquilo que os filósofos fazem, indicando de seguida os textos de Platão, Aristóteles, Descartes, Hume, Kant, Russell, Wittgenstein, Sartre e de outros filósofos famosos. Contudo, é improvável que esta resposta possa ser realmente útil se o leitor está a começar agora o seu estudo da filosofia, uma vez que, nesse caso, não terá provavelmente lido nada desses autores. Mas mesmo que já tenha lido alguma coisa, pode mesmo assim ser difícil dizer o que têm em comum, se é que existe realmente uma característica relevante partilhada por todos. Outra forma de abordar a questão é indicar que a palavra «filosofia» deriva da palavra grega que significa «amor da sabedoria». Contudo, isto é muito vago e ainda nos ajuda menos do que dizer apenas que a filosofia é aquilo que os filósofos fazem. Precisamos por isso de alguns comentários gerais sobre o que é a filosofia.

A filosofia é uma atividade: é uma forma de pensar acerca de certas questões. A sua característica mais marcante é o uso de argumentos lógicos. A atividade dos filósofos é, tipicamente, argumentativa: ou inventam argumentos, ou criticam os argumentos de outras pessoas ou fazem as duas coisas. Os filósofos também analisam e clarificam conceitos. A palavra «filosofia» é muitas vezes usada num sentido muito mais lato do que este, para referir uma perspectiva geral da vida ou para referir algumas formas de misticismo. Não irei usar a palavra neste sentido lato: o meu objetivo é lançar alguma luz sobre algumas das áreas centrais de discussão da tradição que começou com os gregos antigos e que tem prosperado no século XX, sobretudo na Europa e na América.

Que tipo de coisas discutem os filósofos desta tradição? Muitas vezes, examinam crenças que quase toda a gente aceita acriticamente a maior parte do tempo. Ocupam-se de questões relacionadas com o que podemos chamar vagamente «o sentido da vida»: questões acerca da religião, do bem e do mal, da política, da natureza do mundo exterior, da mente, da ciência, da arte e de muitos outros assuntos. Por exemplo, muitas pessoas vivem as suas vidas sem questionarem as suas crenças fundamentais, tais como a crença de que não se deve matar. Mas por que razão não se deve matar? Que justificação existe para dizer que não se deve matar? Não se deve matar em nenhuma circunstância? E, afinal, que quer dizer a palavra «dever»? Estas são questões filosóficas. Ao examinarmos as nossas crenças, muitas delas revelam fundamentos firmes; mas algumas não. O estudo da filosofia não só nos ajuda a pensar claramente sobre os nossos preconceitos, como ajuda a clarificar de forma precisa aquilo em que acreditamos. Ao longo desse processo desenvolve-se uma capacidade para argumentar de forma coerente sobre um vasto leque de temas — uma capacidade muito útil que pode ser aplicada em muitas áreas.

Desde o tempo de Sócrates que surgiram muitos filósofos importantes. Já referi alguns no primeiro parágrafo. Um livro de introdução à filosofia poderia abordar o tema historicamente, analisando as contribuições desses grandes filósofos por ordem cronológica. Mas não é isso que farei neste livro. Ao invés, abordarei o tema por tópicos: uma abordagem centrada em torno de questões filosóficas particulares e não na história. A história da filosofia é, em si mesma, um assunto fascinante e importante; muitos dos textos filosóficos clássicos são também grandes obras de literatura: os diálogos socráticos de Platão, as Meditações, de Descartes, a Investigação sobre o Entendimento Humano, de David Hume e Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche, para citar só alguns exemplos, são todas magníficos exemplos de boa prosa, sejam quais forem os padrões que usemos. Apesar de o estudo da história da filosofia ser muito importante, o meu objetivo neste livro é oferecer ao leitor instrumentos para pensar por si próprio sobre temas filosóficos, em vez de ser apenas capaz de explicar o que algumas grandes figuras do passado pensaram acerca desses temas. Esses temas não interessam apenas aos filósofos: emergem naturalmente das circunstâncias humanas; muitas pessoas que nunca abriram um livro de filosofia pensam espontaneamente nesses temas.

Qualquer estudo sério da filosofia terá de envolver uma mistura de estudos históricos e temáticos, uma vez que se não conhecermos os argumentos e os erros dos filósofos anteriores não podemos ter a esperança de contribuir substancialmente para o avanço da filosofia. Sem algum conhecimento da história, os filósofos nunca progrediriam: continuariam a fazer os mesmos erros, sem saber que já tinham sido feitos. E muitos filósofos desenvolvem as suas próprias teorias ao verem o que está errado no trabalho dos filósofos anteriores. Contudo, num pequeno livro como este, é impossível fazer justiça às complexidades da obra de filósofos individuais. As leituras complementares, sugeridas no fim de cada capítulo, ajudam a colocar num contexto histórico mais vasto os assuntos aqui discutidos.

Defende-se por vezes que não vale a pena estudar filosofia uma vez que tudo o que os filósofos fazem é discutir sofisticamente o significado das palavras; nunca parecem atingir quaisquer conclusões de qualquer importância e a sua contribuição para a sociedade é virtualmente nula. Continuam a discutir acerca dos mesmos problemas que cativaram a atenção dos gregos. Parece que a filosofia não muda nada; a filosofia deixa tudo tal e qual.

Qual é afinal a importância de estudar filosofia? Começar a questionar as bases fundamentais da nossa vida pode até ser perigoso: podemos acabar por nos sentir incapazes de fazer o que quer que seja, paralisados por fazer demasiadas perguntas. Na verdade, a caricatura do filósofo é geralmente a de alguém que é brilhante a lidar com pensamentos altamente abstratos no conforto de um sofá, numa sala de Oxford ou Cambridge, mas incapaz de lidar com as coisas práticas da vida: alguém que consegue explicar as mais complicadas passagens da filosofia de Hegel, mas que não consegue cozer um ovo.

Uma razão importante para estudar filosofia é o fato de esta lidar com questões fundamentais acerca do sentido da nossa existência. A maior parte das pessoas, num ou noutro momento da sua vida, já se interrogou a respeito de questões filosóficas. Por que razão estamos aqui? Há alguma demonstração da existência de Deus? As nossas vidas têm algum propósito? O que faz com que algumas ações sejam moralmente boas ou más? Poderemos alguma vez ter justificação para violar a lei? Poderá a nossa vida ser apenas um sonho? É a mente diferente do corpo, ou seremos apenas seres físicos? Como progride a ciência? O que é a arte? E assim por diante.

Texto retirado de Elementos Básicos de Filosofia, de Nigel Warburton (Lisboa: Gradiva, 1998).

O Valor da Filosofia
Por: Bertrand Russell

Tendo chegado agora ao fim da nossa breve e muito incompleta análise dos problemas da filosofia, será bom considerar, em conclusão, qual é o valor da filosofia e por que deve ser estudada. É da maior necessidade considerar esta questão, tendo em conta que muitos homens, sob a influência da ciência ou de assuntos práticos, inclinam-se a duvidar de que a filosofia seja algo melhor do que futilidades inocentes mas inúteis, distinções excessivamente subtis, e controvérsias em questões acerca das quais o conhecimento é impossível.

Esta visão da filosofia parece resultar, parcialmente de uma concepção errada dos fins da vida, parcialmente de uma concepção errada do gênero de bens que a filosofia tenta alcançar. A física, por intermédio de invenções, é útil a inúmeras pessoas que a ignoram completamente; assim, o estudo da física deve ser recomendado, não apenas, ou primeiramente, devido ao efeito no estudante, mas antes devido ao efeito na humanidade em geral. Esta utilidade não pertence à filosofia. Se o estudo da filosofia tem qualquer valor para os que não são estudantes de filosofia, tem de ser apenas indiretamente, através dos seus efeitos sobre as vidas daqueles que a estudam. É nestes efeitos, portanto, se em algum lado, que o valor da filosofia deve ser primeiramente procurado.

Mas mais, se não queremos fracassar no nosso esforço para determinar o valor da filosofia, temos primeiro de libertar as nossas mentes dos preconceitos dos que são erradamente chamados homens «práticos». O homem «prático», como a palavra é freqüentemente usada, é aquele que reconhece apenas necessidades materiais, que compreende que os homens devem ter alimento para o corpo, mas esquece-se da necessidade de prover alimento à mente. Se todos os homens vivessem desafogadamente, se a pobreza e a doença tivessem sido reduzidas ao seu mais baixo ponto possível, haveria ainda muito a fazer para produzir uma sociedade válida; e mesmo neste mundo os bens da mente são pelo menos tão importantes como os bens do corpo. É exclusivamente entre os bens da mente que encontraremos o valor da filosofia; e apenas os que não são indiferentes a estes bens podem ser persuadidos de que o estudo da filosofia não é uma perda de tempo.

A filosofia, como todos os outros estudos, visa primeiramente ao conhecimento. O conhecimento a que visa é o gênero de conhecimento que dá unidade e sistema ao corpo das ciências, e o gênero que resulta de um exame crítico dos fundamentos das nossas convicções, preconceitos e crenças. Mas não se pode sustentar que a filosofia tenha tido um grande sucesso nas suas tentativas de dar respostas exatas às suas questões. Se perguntarmos a um matemático, um mineralogista, um historiador, ou qualquer outro homem de saber, que corpo definido de verdades foi descoberto pela sua ciência, a sua resposta durará tanto quanto quiserdes ouvir. Mas se colocardes a mesma questão a um filósofo, terá, se for franco, de confessar que o seu estudo não alcançou resultados positivos como os que foram alcançados por outras ciências. É verdade que isto é parcialmente explicado pelo fato de que assim que se torna possível um conhecimento definido acerca de qualquer assunto, este assunto deixa de ser chamado filosofia e torna-se uma ciência separada. A totalidade do estudo dos céus, que agora pertence à astronomia, estava outrora incluído na filosofia; a grande obra de Newton foi chamada «os princípios matemáticos da filosofia natural». Similarmente, o estudo da mente humana, que fazia parte da filosofia, foi agora separado da filosofia e tornou-se a ciência da psicologia. Deste modo, a incerteza da filosofia é, em larga medida, mais aparente que real: aquelas questões que já são capazes de respostas exatas são colocadas nas ciências, enquanto apenas aquelas para as quais, no presente, nenhuma resposta exata pode ser dada, subsistem para formar o resíduo a que se chama filosofia.

Esta é, contudo, apenas uma parte da verdade acerca da incerteza da filosofia. Há muitas questões — e entre elas as que são do mais profundo interesse para a nossa vida espiritual — que, tanto quanto podemos ver, devem continuar insolúveis, a menos que os poderes do intelecto humano se tornem de uma ordem completamente diferente da atual. Tem o universo qualquer unidade de plano ou de propósito, ou é uma confluência fortuita de átomos? É a consciência uma parte permanente do universo, dando esperança de crescimento indefinido em sabedoria, ou é um acidente transitório num pequeno planeta no qual a vida deve por fim tornar-se impossível? São o bem e o mal importantes para o universo ou apenas para o homem? Estas são questões filosóficas, a que diferentes filósofos responderam diversamente. Mas parece que, quer se possa ou não descobrir respostas de outro modo, não se pode demonstrar como verdadeira nenhuma das respostas sugeridas pela filosofia. Contudo, por muito pequena que possa ser a esperança de descobrir uma resposta, faz parte da obrigação da filosofia continuar a considerar tais questões, tornar-nos conscientes da sua importância, examinar todas as abordagens que lhes façam, e manter vivo o interesse especulativo pelo universo, que pode ser destruído se nos limitarmos ao conhecimento claramente verificável.

É verdade que muitos filósofos defenderam que a filosofia pode estabelecer a verdade de certas respostas a estas questões fundamentais. Supuseram que se pode provar por demonstrações rigorosas ser verdade o que é mais importante nas crenças religiosas. Para julgar estas tentativas, é necessário examinar o conhecimento humano, e formar uma opinião quanto aos seus métodos e às suas limitações. Seria insensato pronunciarmo-nos dogmaticamente sobre este assunto, mas se as investigações dos nossos capítulos anteriores não nos induziram em erro, seremos compelidos a renunciar à esperança de encontrar provas filosóficas das crenças religiosas. Não podemos, portanto, incluir como parte do valor da filosofia um conjunto de respostas exactas a essas questões. Por este motivo, uma vez mais, o valor da filosofia não deve depender de qualquer suposto corpo de conhecimentos claramente verificáveis a ser adquirido por aqueles que a estudam.

O valor da filosofia deve, de fato, ser procurado principalmente na sua própria incerteza. O homem que não tem qualquer laivo de filosofia, caminha pela vida presso aos preconceitos derivados do senso comum, das crenças habituais da sua época ou da sua nação, e das convicções que se desenvolveram na sua mente sem a cooperação ou o consentimento da sua razão deliberada. Para um tal homem o mundo tende a tornar-se definido, finito, óbvio; os objetos vulgares não levantam questões e as possibilidades estranhas são desdenhosamente rejeitadas. Pelo contrário, assim que começamos a filosofar, verificamos, como vimos nos nossos capítulos iniciais, que mesmo os objetos mais vulgares levam a problemas para os quais podem ser dadas apenas respostas muito incompletas. A filosofia, embora incapaz de nos dizer com certeza qual é a resposta verdadeira para as dúvidas que origina, é capaz de sugerir muitas possibilidades que alargam os nossos pensamentos e libertam-nos da tirania do costume. Assim, embora diminua o nosso sentimento de certeza quanto ao que as coisas são, aumenta enormemente o nosso conhecimento quanto ao que podem ser; remove o dogmatismo um tanto arrogante dos que nunca viajaram na região da dúvida libertadora, e mantém vivo o nosso sentido de admiração mostrando as coisas familiares com um aspecto estranho.

Para além da sua utilidade na revelação de possibilidades insuspeitas, a filosofia tem um valor — talvez o seu principal valor — que resulta da grandeza dos objetos que contempla e da libertação de objetivos pessoais e limitados que resulta desta contemplação. A vida do homem instintivo está encerrada no círculo dos seus interesses privados: a família e os amigos podem estar incluídos, mas o mundo exterior não é tomado em consideração exceto na medida em que possa ajudar ou impedir o que entra no círculo dos desejos instintivos. Numa tal vida há algo de febril e fechado, em comparação com a qual a vida filosófica é calma e livre. O mundo privado dos interesses instintivos é pequeno, colocado no meio de um grande e poderoso mundo que deve, cedo ou tarde, reduzir o nosso mundo privado a ruínas. A menos que consigamos alargar nossos interesses de modo a incluir a totalidade do mundo exterior, estaremos na posição de uma guarnição numa fortaleza sitiada, sabendo que o inimigo impede a fuga e que a rendição final é inevitável. Numa tal vida não há paz, mas uma luta constante entre a insistência do desejo e a incapacidade da vontade. De um modo ou doutro, se a nossa vida deve ser grande e livre, temos de fugir desta prisão e desta luta.

Um modo de fuga é pela contemplação filosófica. A contemplação filosófica, na sua visão mais ampla, não divide o universo em dois campos hostis — amigos e inimigos, prestáveis e hostis, bons e maus — vê o todo com imparcialidade. A contemplação filosófica, quando é pura, não visa provar que o resto do universo é idêntico ao homem. Toda a aquisição de conhecimento é um alargamento do Eu, mas este alargamento é mais bem alcançado quando não é diretamente procurado. É obtido quando o desejo de conhecimento é apenas operativo, por um estudo que não deseja antecipadamente que os seus objetos tenham esta ou aquela característica, mas adapta o Eu às características que encontra nos seus objetos. Este alargamento do Eu não é obtido quando, tomando o Eu como ele é, tentamos mostrar que o mundo é tão similar a este Eu que o seu conhecimento é possível sem qualquer aceitação do que parece alheio. O desejo de o provar é uma forma de auto-afirmação e, como toda a auto-afirmação, é um obstáculo ao crescimento que deseja do Eu, e de que o Eu sabe que é capaz. A auto-afirmação, na especulação filosófica como em tudo o mais, vê o mundo como um meio para os seus próprios fins; deste modo, considera o mundo de menor importância do que o Eu, e o Eu limita a grandeza dos seus bens. Na contemplação, pelo contrário, partimos do não-Eu e, por intermédio da sua grandeza, os limites do Eu são alargados; por intermédio da infinidade do universo a mente que o contempla alcança um quinhão da infinidade.

Por esta razão a grandeza de alma não é fomentada pelas filosofias que assimilam o universo ao Homem. O conhecimento é uma forma de união do Eu e do não-Eu; como todas as uniões, é prejudicado pelo domínio e, portanto, por qualquer tentativa de forçar o universo a estar em conformidade com o que encontramos em nós. Há uma tendência filosófica muito difundida para a visão que nos diz que o Homem é a medida de todas as coisas, que a verdade é feita pelo homem, que o espaço, o tempo e o mundo dos universais são propriedades da mente, e que, se há algo não criado pela mente, é incognoscível e sem qualquer importância para nós. Esta visão, se as nossas discussões anteriores estavam corretas, não é verdadeira; mas para além de não ser verdadeira, tem o efeito de despojar a contemplação filosófica de tudo o que lhe dá valor, uma vez que prende a contemplação ao Eu. Aquilo a que chama conhecimento não é uma união com o não-Eu, mas um conjunto de preconceitos, hábitos, e desejos, que constituem um véu impenetrável entre nós e o mundo do outro lado. O homem que encontra prazer numa tal teoria do conhecimento é como o homem que nunca deixa o círculo doméstico por receio de que a sua palavra possa não ser lei.

Pelo contrário, a verdadeira contemplação filosófica encontra a sua satisfação em todo o alargamento do não-Eu, em tudo o que magnífica os objetos contemplados, e desse modo o sujeito que contempla. Tudo, na contemplação, que é pessoal ou privado, tudo o que depende do hábito, do interesse pessoal, ou desejo, deforma o objeto e, por isso, prejudica a união que o intelecto procura. Ao fazer assim uma barreira entre o sujeito e o objeto, estas coisas pessoais e privadas tornam-se uma prisão para o intelecto. O intelecto livre verá como Deus pode ver, sem um aqui e agora, sem esperanças e temores, sem o empecilho das crenças usuais e preconceitos tradicionais, calmamente, desapaixonadamente, no desejo único e exclusivo de conhecimento — conhecimento tão impessoal, tão puramente contemplativo, quanto é possível ao homem alcançar. Por este motivo também, o intelecto livre valorizará mais o conhecimento abstrato e universal no qual os acidentes da história privada não entram, do que o conhecimento trazido pelos sentidos, e dependente, como tal conhecimento tem de ser, de um ponto de vista exclusivo e pessoal e de um corpo cujos órgãos dos sentidos deformam tanto quanto revelam.

A mente que se acostumou à liberdade e à imparcialidade da contemplação filosófica conservará algo da mesma liberdade e imparcialidade no mundo da ação e emoção. Verá os seus propósitos e desejos como partes do todo, com a ausência de insistência que resulta de vê-los como fragmentos infinitesimais num mundo de que tudo o resto não é afetado por nenhumas das ações do homem. A imparcialidade que, na contemplação, é o desejo puro pela verdade, é a mesma qualidade da mente que, na ação, é a justiça e na emoção é esse amor universal que pode ser dado a tudo, e não apenas àqueles que são considerados úteis ou admiráveis. Esta contemplação alarga não apenas os objetos dos nossos pensamentos, mas também os objetos das nossas ações e das nossas afecções; faz-nos cidadãos do universo e não apenas de uma cidade murada em guerra com tudo o resto. A verdadeira liberdade humana e a sua libertação da sujeição, às esperanças e temores mesquinhos consiste nesta cidadania do universo.

Assim, resumindo a nossa discussão do valor da filosofia: a filosofia deve ser estudada, não por causa de quaisquer respostas exatas às suas questões, uma vez que nenhumas respostas exatas podem, em regra, ser conhecidas como verdadeiras, mas antes por causa das próprias questões; porque estas questões alargam a nossa concepção do que é possível, enriquecem a nossa imaginação intelectual e diminuem a segurança dogmática que fecha a mente à especulação; mas acima de tudo porque, devido à grandeza do universo que a filosofia contempla, a mente também engrandece e torna-se capaz da união com o universo que constitui o seu bem mais alto.

Tradução de Álvaro Nunes

Texto retirado de The Problems of Philosophy (Oxford University Press, 1912).

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O Que é a Filosofia?
Por: Thomas Nagel
Universidade de Nova Iorque

As nossas capacidades analíticas estão muitas vezes já altamente desenvolvidas antes de termos aprendido muita coisa acerca do mundo, e por volta dos catorze anos muitas pessoas começam a pensar por si próprias em problemas filosóficos — sobre o que realmente existe, se nós podemos saber alguma coisa, se alguma coisa é realmente correta ou errada, se a vida faz sentido, se a morte é o fim. Escreve-se acerca destes problemas desde há milhares de anos, mas a matéria-prima filosófica vem diretamente do mundo e da nossa relação com ele, e não de escritos do passado. É por isso que continuam a surgir uma e outra vez na cabeça de pessoas que não leram nada acerca deles.

Este livro é uma introdução direta a nove problemas filosóficos, cada um dos quais pode ser entendido por si mesmo, sem referência à história do pensamento. Não discutirei os grandes escritos filosóficos do passado nem o contexto cultural desses escritos. O núcleo da filosofia reside em certas questões que o espírito reflexivo humano acha naturalmente enigmáticas, e a melhor maneira de começar o estudo da filosofia é pensar diretamente sobre elas. Uma vez feito isso, encontramo-nos numa posição melhor para apreciar o trabalho de outras pessoas que tentaram solucionar os mesmos problemas.

A filosofia é diferente da ciência e da matemática. Ao contrário da ciência, não assenta em experimentações nem na observação, mas apenas no pensamento. E ao contrário da matemática não tem métodos formais de prova. A filosofia faz-se colocando questões, argumentando, ensaiando idéias e pensando em argumentos possíveis contra elas, e procurando saber como funcionam realmente os nossos conceitos.

A preocupação fundamental da filosofia é questionar e compreender idéias muito comuns que usamos todos os dias sem pensar nelas. Um historiador pode perguntar o que aconteceu em determinado momento do passado, mas um filósofo perguntará: «O que é o tempo?» Um matemático pode investigar as relações entre os números, mas um filósofo perguntará: «o que é um número?» Um físico perguntará o que constitui os átomos ou o que explica a gravidade, mas um filósofo irá perguntar como podemos saber que existe qualquer coisa fora das nossas mentes. Um psicólogo pode investigar como as crianças aprendem uma linguagem, mas um filósofo perguntará: «Que faz uma palavra significar qualquer coisa?» Qualquer pessoa pode perguntar se entrar num cinema sem pagar está errado, mas um filósofo perguntará: «O que torna uma ação boa ou má?»

Não poderíamos viver sem tomar como garantidas as idéias de tempo, número, conhecimento, linguagem, bem e mal, a maior parte do tempo; mas em filosofia investigamos essas mesmas coisas. O objetivo é levar o conhecimento do mundo e de nós um pouco mais longe. É óbvio que não é fácil. Quanto mais básicas são as idéias que tentamos investigar, menos instrumentos temos para nos ajudar. Não há muitas coisas que possamos assumir como verdadeiras ou tomar como garantidas. Por isso, a filosofia é uma atividade de certa forma vertiginosa, e poucos dos seus resultados ficam por desafiar por muito tempo.

Thomas Nagel

Texto retirado de Que Quer Dizer Tudo Isto?, de Thomas Nagel (tradução de Teresa Marques, Gradiva, 1995)

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Para que serve a filosofia?
Simon Blackburn
Universidade de Cambridge

Está tudo muito bem, mas será que vale a pena preocuparmo-nos? Qual é o interesse? A reflexão não põe o mundo a funcionar. Não coze o pão nem põe os aviões no ar. Por que razão não havemos de pôr as perguntas reflexivas de lado, e passar às outras coisas? Irei esboçar três tipos de respostas: a elevada, a intermédia e a chã.

A resposta elevada põe em questão a pergunta — uma estratégia filosófica típica, pois implica subir um grau na ordem da reflexão. Que queremos dizer quando perguntamos para que serve? A reflexão não coze o pão, mas também a arquitetura não o faz, nem a música, a arte, a história ou a literatura. Acontece apenas que queremos compreender-nos. Queremos isto pelo seu valor intrínseco, tal como os especialistas em ciências ou matemáticas puras podem querer compreender o princípio do universo, ou a teoria dos conjuntos, pelo seu valor intrínseco, ou como um músico pode querer resolver alguns problemas na harmonia ou no contraponto pelo seu valor intrínseco. São coisas que não se fazem em função de aplicações práticas. Grande parte da vida trata-se de fato de criar gado para poder comprar mais terra, para poder criar mais gado, para poder comprar mais terra… Os momentos em que nos libertamos disso, seja para fazer matemática ou música, para ler Platão ou Eça de Queirós, devem ser acarinhados. São momentos em que desenvolvemos nossa saúde mental. E a nossa saúde mental é boa em si, como a nossa saúde física. Além disso, há no fim de contas uma recompensa em termos de prazer. Quando temos saúde física, o exercício físico dá-nos prazer, e quando temos saúde mental, o exercício mental dá-nos prazer.

Esta é uma resposta purista. Esta resposta não está errada, mas tem um problema. Acontece que provavelmente só consegue ser atraente para as pessoas que já estão parcialmente convencidas — pessoas que não fizeram a pergunta original num tom de voz muito agressivo.

Por isso, eis uma resposta intermédia. A reflexão é importante porque está na continuidade com a prática. O modo como pensamos sobre o que estamos a fazer afeta o modo como o fazemos, ou até mesmo se o chegamos a fazer; pode conduzir a nossa investigação, ou a nossa atitude relativamente a pessoas que fazem as coisas de modo diferente, ou até toda a nossa vida. Tomemos um exemplo simples: se as nossas reflexões nos levarem a acreditar na vida depois da morte, podemos estar preparados para enfrentar perseguições que não enfrentaríamos se nos convencêssemos — como muitos filósofos — de que a noção não faz sentido. O fatalismo, ou a idéia de que o futuro está determinado, seja o que for que façamos, é uma convicção puramente filosófica — mas é uma convicção que tem o poder de paralisar a ação. Em termos mais políticos, pode também exprimir a aceitação do baixo estatuto social atribuído a alguns segmentos da população, o que pode ser reconfortante para pessoas que, pertencendo aos estatutos mais elevados, encorajam essa aceitação.

Consideremos alguns exemplos mais prevalecentes no Ocidente. Ao refletir sobre a natureza humana, muitas pessoas pensam que, no fundo, somos inteiramente egoístas. Só procuramos a nossa própria vantagem e nunca nos preocupamos realmente com mais ninguém. Quando parece que nos preocupamos com os outros, isso apenas disfarça a nossa esperança num benefício futuro para nós mesmos. O paradigma principal nas ciências sociais é o homo economicus — o homem econômico. O homem econômico toma conta de si, numa luta competitiva com os outros. Ora, se as pessoas pensarem que somos todos assim sempre, as suas relações com os outros se transformam; pois terão menos confiança nos outros, serão menos cooperativos e mais desconfiados. Isto muda o modo como interagem com os outros, o que acarreta vários custos. Irão descobrir que é difícil, e por vezes impossível, manter atividades cooperativas: podem ficar encurralados naquilo a que o filósofo Thomas Hobbes (1588-1676) chamou «a guerra de todos contra todos». Na vida real, essas pessoas terão um alto custo a pagar, pois estão sempre a pensar que estão sendo enganadas. Se a minha atitude for a de que «um contrato verbal não vale o papel em que está escrito», terei de pagar a advogados para conceber contratos com sanções, e se eu não confiar nos advogados por pensar que eles nada fazem exceto encher-se de dinheiro à custa dos outros, terei de contratar outros advogados para verificarem o trabalho dos primeiros advogados, e assim por diante. Mas tudo isto pode estar baseado num erro filosófico, que consiste em olhar para a motivação humana através de um conjunto de categorias erradas, compreendendo portanto de forma errada a sua natureza. Talvez as pessoas possam importar-se umas com as outras, ou talvez possam pelo menos se preocupar em cumprir a sua parte e em manter as suas promessas. Se tivermos uma imagem mais otimista, talvez as pessoas possam viver de acordo com essa imagem. Talvez as suas vidas melhorem. Assim, pensar um pouco, encontrar as categorias certas para compreender a motivação humana, é uma tarefa prática importante. Não é algo que esteja confinado ao escritório; pelo contrário, é algo que extravasa o escritório.

Eis um exemplo muito diferente. O astrônomo polaco Nicolau Copérnico (1473-1543) refletiu sobre como temos conhecimento do movimento. Copérnico percebeu que o modo como compreendemos o movimento depende da nossa perspectiva: isto é, a questão de saber se vemos ou não os objetos em movimento é o resultado do modo como nós próprios estamos colocados e, em particular, resulta da questão de saber se nós próprios estamos ou não em movimento. (Sobretudo em comboios ou nos aeroportos, já tivemos a ilusão de ver o comboio ou avião que está ao lado do nosso a começar a movimentar-se, apercebendo-nos depois, com um sobressalto, que somos nós que estamos em movimento. Mas no tempo de Copérnico havia menos exemplos quotidianos.) Assim, os movimentos aparentes das estrelas e dos planetas poderiam ocorrer não por eles se movimentarem como aparentam, mas por causa do nosso próprio movimento. E afinal as coisas são mesmo assim. Neste caso, a reflexão sobre a natureza do conhecimento — o que os filósofos chamam «investigação epistemológica», do grego episteme, que significa conhecimento — deu origem ao primeiro grande salto da ciência moderna. As reflexões de Einstein sobre o modo como sabemos que dois acontecimentos são simultâneos tinham a mesma estrutura. Einstein percebeu que os resultados das nossas medições iriam depender da direção em que estamos a viajar relativamente aos acontecimentos que estamos a cronometrar. Isto conduziu à teoria da relatividade especial (e o próprio Einstein reconheceu a importância dos filósofos que o precederam, ao sensibilizarem-no para as complexidades epistemológicas de tais medições).

Como exemplo final, podemos considerar um problema filosófico que muitas pessoas enfrentam quando pensam sobre a mente e o corpo. Muitas pessoas têm em vista uma separação estrita entre a mente, como uma coisa, e o corpo, como uma coisa diferente. Embora isto possa parecer apenas bom senso, pode começar a contaminar a prática de uma maneira bastante insidiosa. Por exemplo, começa a ser difícil ver como estas duas coisas diferentes interagem. Os médicos podem então achar quase inevitável que falhem os tratamentos das condições físicas que respondem a causas mentais ou psicológicas. Podem achar praticamente impossível ver como interferir na mente de alguém pode alguma vez causar mudanças no sistema físico complexo que é o seu corpo. Afinal, a boa ciência diz-nos que é necessário ter causas físicas e químicas para ter efeitos físicos e químicos. Logo, podemos ter uma certeza a priori, uma certeza de poltrona, de que um certo tipo de tratamento (drogas e choques elétricos, por exemplo) tem de estar «correto» e que outro tipo de tratamento (como tratar os pacientes humanamente, o aconselhamento e a análise) está «errado»: não é científico, não é sólido, está condenado a falhar. Mas esta certeza não tem como premissa a ciência mas uma falsa filosofia. Uma concepção filosófica melhor da relação entre a mente e o corpo muda essa certeza. Uma concepção melhor deve permitir-nos ver que nada há de surpreendente no fato de haver interação mente-corpo. Um dos fatos mais corriqueiros, por exemplo, é que pensar em algumas coisas (domínio mental) pode fazer corar (domínio físico). Pensar num perigo futuro pode causar todo o tipo de mudanças corporais: o coração bate rapidamente, os punhos fecham-se, as entranhas contraem-se. Por extrapolação, não deve haver qualquer dificuldade em compreender que um estado mental como um alegre otimismo possa afetar um estado físico como o desaparecimento de manchas na pele ou até a remissão de um cancro. O problema de saber se tais coisas acontecem realmente transforma-se numa questão puramente empírica. A própria certeza de poltrona de que tais coisas não poderiam acontecer é afinal algo que depende de uma má compreensão das estruturas do pensamento, ou por outras palavras, má filosofia — e nesse sentido é anticientífica. E perceber isto pode melhorar as atitudes e as práticas médicas.

Assim, a resposta intermédia chama-nos a atenção para o fato de a reflexão estar na continuidade com a prática, podendo a nossa prática ser melhor ou pior de acordo com o valor das nossas reflexões. Um sistema de pensamento é algo em que vivemos, tal como uma casa, e se a nossa casa intelectual estiver fechada e for limitada precisamos de ver que outras estruturas melhores serão possíveis.

A resposta chã limita-se a sublinhar um pouco este aspecto, não relativamente a belas disciplinas graciosas como a economia e a física, mas relativamente ao piso térreo onde a vida humana é um pouco menos elegante. Uma das séries de sátiras gravadas pelo pintor espanhol Goya tem por título «O Sono da Razão Produz Monstros». Goya pensava que muitas das loucuras da humanidade resultavam do «sono da razão». Há sempre pessoas prontas a dizer-nos o que queremos, a explicar-nos como nos vão dar essas coisas e a mostrar-nos no que devemos acreditar. As convicções são contagiosas, e é possível convencer as pessoas de praticamente tudo. Geralmente, estamos dispostos a pensar que os nossos hábitos, as nossas convicções, a nossa religião e os nossos políticos são melhores do que os deles, ou que os nossos direitos dados por Deus anulam os direitos deles, ou que os nossos interesses exigem ataques defensivos ou dissuasivos contra eles. Em última análise, trata-se de idéias que fazem as pessoas matarem-se umas às outras. É por causa de idéias sobre o que os outros são, ou quem somos, ou o que os nossos interesses ou direitos exigem que fazemos guerras ou oprimimos os outros de consciência tranqüila, ou até aceitamos por vezes ser oprimidos. Quando estas convicções implicam o sono da razão, o despertar crítico é o antídoto. A reflexão permite-nos recuar, ver que talvez a nossa perspectiva sobre uma dada situação esteja distorcida ou seja cega, ou pelo menos ver se há argumentos a favor dos nossos hábitos, ou se é tudo meramente subjetivo. Fazer isto bem é pôr em prática mais alguma engenharia conceptual.

A reflexão pode ser encarada como uma coisa perigosa, visto que não podemos saber à partida onde nos conduzirá. Há sempre pensamentos que se opõem à reflexão. As questões filosóficas fazem muitas pessoas sentirem-se desconfortáveis, ou mesmo ultrajadas. Algumas têm medo que as suas idéias possam não resistir tão bem como elas gostariam se começarem a pensar sobre elas. Outras podem querer basear-se nas «políticas da identidade» ou, por outras palavras, no tipo de identificação com uma tradição, grupo ou identidades nacionais ou étnicas particulares que os convida a voltar as costas a estranhos que coloquem em causa os hábitos do grupo. Essas pessoas irão minimizar a crítica: os seus valores são «incomensuráveis» relativamente aos valores dos estranhos. Só os irmãos e irmãs do seu círculo podem compreendê-las. Algumas pessoas gostam de se refugiar num círculo espesso, confortável e tradicional de tradições populares, sem se preocuparem muito com a sua estrutura, as suas origens, ou mesmo com as críticas que possam merecer. A reflexão abre a avenida da crítica, e as tradições populares podem não gostar da crítica. Neste sentido, as ideologias tornam-se círculos fechados, prontas a sentirem-se ultrajadas pelo espírito interrogante.

Nos últimos 2 mil anos, a tradição filosófica tem sido a inimiga deste tipo de complacência confortável. Tem insistido na idéia de que uma vida não examinada não vale a pena ser vivida. Tem insistido no poder da reflexão racional para descobrir o que há de errado nas nossas práticas, e para as substituir por práticas melhores. Tem identificado a auto-reflexão crítica com a liberdade — e a idéia é que só quando nos conseguimos ver a nós mesmos de forma adequada podemos controlar a direção em que desejamos caminhar. Só quando conseguimos ver a nossa situação de forma estável e a vemos na sua totalidade podemos começar a pensar no que fazer a seu respeito. Marx disse que os filósofos anteriores tinham procurado compreender o mundo, ao passo que o que era preciso era mudá-lo — uma das asserções famosas mais tolas de todos os tempos (e completamente desmentida pela sua própria prática intelectual). Teria sido melhor que Marx tivesse acrescentado que sem compreender o mundo, pouco saberemos em termos de como o mudar — pelo menos para melhor. Rosencranz e Guildenstern admitem não saber tocar gaita-de-foles, mas tentam manipular Hamlet. Quando agimos sem compreensão, o mundo está perfeitamente preparado para dar voz à reação de Hamlet: «Pensais que eu sou mais fácil de controlar que uma gaita-de-foles?»

Há correntes acadêmicas no nosso tempo que são contra estas idéias. Há pessoas que questionam a própria noção de verdade, de razão, ou a possibilidade da reflexão desapaixonada. Na sua maior parte faz má filosofia, muitas vezes sem saberem que é isso que estão a fazer: são engenheiros conceptuais que não conseguem desenhar um plano, quando mais conceber uma estrutura. Voltaremos a esta questão várias vezes ao longo do livro, mas para já posso prometer que este livro está de cara levantada ao lado da tradição e contra qualquer cepticismo moderno, ou pós-moderno, quanto ao valor da reflexão.

O mote completo de Goya para a sua gravura é o seguinte: «A imaginação abandonada pela razão produz monstros impossíveis; unida a ela, é a mãe das artes e a fonte dos seus encantos». É assim que devemos encarar as coisas.

Texto retirado de Pense: Uma introdução à filosofia, de Simon Blackburn (Lisboa: Gradiva, 2000).

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