ÉTICA E CIDADANIA
Por: Jorge Schemes
Cada vez mais se faz necessário pensar e produzir materiais didáticos que abordem os temas: ética e cidadania, educação e orientação sexual, prevenção ao uso indevido de drogas e prevenção à violência dentro das unidades escolares. O desafio que se apresenta aos educadores é de: como trabalhar a interlocução de temas tão relevantes com crianças e adolescentes? Evitar os extremos já é um bom começo. Estes extremos envolvem atitudes conscientes ou não de repressão e autoritarismo (onde as crianças são oprimidas e “pisoteadas”), e, por outro lado, liberdade absoluta e irrestrita (onde crianças de três anos mandam nos de trinta). É muito difícil realizar um trabalho ético se há uma via de mão única. Portanto é fundamental romper o desafio e estabelecer uma interlocução com equilíbrio, bom senso e ética. Sendo assim, é necessário estabelecer uma interlocução simbiótica com nossos alunos. Faz-se necessário olhar os nossos alunos não como meros expectadores, mas como protagonistas dos valores, da paz, da construção histórica de uma sociedade mais humanizada, digna, justa e solidária. Diante disto a pergunta que levantamos para reflexão é: como podemos produzir referenciais (paradigmas) que sirvam de suporte para promover uma cultura de paz na escola? Como estabelecer referenciais que sejam capazes de transformar e melhorar o convívio na escola? Primeiramente, antes de qualquer outra coisa, faz-se necessário uma compreensão da ética e da cidadania como norteadores gerais e como os fundamentos sólidos para uma “leitura” de homem e de sociedade.
O objetivo maior de todo projeto ou programa que pretende promover a paz na escola envolve a discusão da violência. É imperativo repensar a finalidade da escola e promover o movimento de construção permanente da cultura para a paz. Para tanto, precisamos trabalhar questões éticas universais, como por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos; uma ética universal de defesa ao meio ambiente e de defesa à vida como essência da existência. Diante disto, vale questionar: qual o papel da educação? Qual o papel da escola? Até que ponto poderá ser modificada a situação?
Precisamos considerar que há coisas que não mudam por meio do discurso apenas, mas por meio de ações, tendo as crianças e os adolescentes como protagonistas. Dentro deste contexto, surge outro questionamento: qual o papel da educação e que contribuição ela pode dar? Algum tipo de contribuição ela sempre dá, resta ter consciência de qual. Há necessidade de pensar (teoria) e fazer (prática) uma escola de qualidade, diferenciada, com um conhecimento que permita o direito ao pensamento e propicie uma leitura crítica da realidade. Geralmente não gostamos do autoquestionamento, mas devemos fazê-lo por meio da seguinte pergunta: Como estamos trabalhando com o conhecimento? As aplicações do conhecimento não podem estar dentro de uma dimensão de conhecimento fechado, isolado da realidade, pronto e acabado, nem tão pouco dentro de uma dimensão de conhecimento com sentido utilitarista imediato. Devemos perceber que a realidade mais próxima está numa simbiose com a realidade mais ampla e com um conhecimento aplicável. Por essa razão, a discusão da violência precisa levar em consideração alguns aspectos, tais como: seu vínculo com a sociedade dentro de uma realidade mais próxima e mais ampla, ou seja, a crise da violência é local, mas também global. A violência é a manifestação de uma realidade mais ampla, por isso faz-se necessário o cultivo de um pensamento crítico, de uma leitura e cosmovisão filosófica de perguntas para tentar encontrar respostas. Nosso compromisso, enquanto educadores, deve ser o de desenvolver uma educação que leve a pensar e analisar criticamente a sociedade. Uma pergunta que pode ser feita para iniciar esta discusão é: que tipos de relações estão sendo postas ou impostas na sociedade? Esta questão não é pertinente apenas a uma área do conhecimento fragmentado no currículo, mas deve estar agregada no fundamento epistemológico de cada disciplina. É necessário pensar a educação para uma cultura de paz como um tema multidisciplinar, e não apenas como um projeto isolado e fragmentado. O objetivo é causar uma mudança na formação de valores e na subcultura arraigada da violência. Esse é um processo lento que deve ser contínuo e sistemático. Essa mudança deve estar na raiz da constituição de valores. Não podemos ignorar a importância da teoria, pois a fundamentação teórica é a base para a construção de ações transformadoras. Ter estrutura teórica é fundamental para saber o caminho que queremos seguir e onde desejamos chegar. Quanto mais profunda for nossa fundamentação teórica mais intencional será a nossa prática.
Um bom começo para esta fundamentação pode ser a ética contemplada nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s). A ética nos PCN’s é um tema transversal, o qual deve envolver aspectos que contemplem a justiça, a cidadania e a solidariedade, o respeito mútuo e o diálogo. Outras propostas apresentam a ética e a cidadania como fundamentos que orientam as concepções de homem e de sociedade, como por exemplo, a Proposta Curricular de Santa Catarina (PCSC). É fundamental entender que a ética envolve a reflexão de aspectos que fundamentam a antropologia, a sociologia e a pedagogia. A ética é o fundamento dos temas transversais (PCN’s) e dos temas multidisciplinares (PCSC), por essa razão não pode ser fragmentada a um tema, mas é a essência dos temas porque permeia a todos. Os temas multidisciplinares incorporam um conjunto de temáticas a serem abordadas no currículo, mas não compõem novas áreas de conhecimento, todavia têm importância equivalente a das áreas existentes.
Como fundamentos da ética entendemos a vivência regulada por normas ou procedimentos específicos de uma determinada época. Há duas perspectivas de abordagem da ética: uma primeira perspectiva é idealista; enquanto uma segunda é norteadora. Ética não pode ser confundida com moral, embora alguns estudiosos considerem ética e moral como sinônimos. Contudo, penso que a ética é mais subjetiva, uma vez que se propõe a fazer uma reflexão sobre o sujeito moral (ético) como uma das garantias da condição humana, mas também envolve reflexões de normas, limites e princípios universais. A ética é normativa porque estabelece normas que determinam o “dever ser” de nossos sentimentos, atos e comportamentos, por essa razão a ética é intrínseca (de dentro para fora). Assim, ética é uma reflexão crítica da moralidade, pois julga as diferentes morais, estabelece normas e limites, envolve a “práxis”, objetiva a construção do sujeito crítico, não alienado e consciente de sua autonomia moral, serve de referência para todos, estabelece princípios universais e generalizantes de respeito, liberdade, autonomia e vida, tem o compromisso com a universalidade da construção histórica da humanidade e se dá o direito de criar valores e de ser a forma de julgamento das diferentes manifestações morais. Por outro lado, a moral envolve valores e práticas sociais de grupos distintos, pois há diferentes morais para diferentes grupos. A moral possui uma interdependência com a ética, estabelece juízos de valor, se manifesta nos costumes, tem aspecto de intersubjetividade (norteia regras de conduta), marca a conduta individual (comportamento), envolve decisões, ações e práticas sociais de grupos.
Diante da pluralidade, da diversidade e da multiculturalidade, a ética precisa ter uma sustentabilidade e permear as ações da escola. Daí surgem outros questionamentos aparentemente óbvios: por que educadores devem se preocupar e se ocupar com assuntos éticos? O que a escola tem a ver com isto? Um dos motivos é porque a incivilidade e o anonimato criam situações de violência social. Mas, é possível abrir espaços para que a escola trate de assuntos que envolvam ética e civilidade? O que é mais barato? Prevenir ou remediar? No que diz respeito a ética, a civilidade, a responsabilidade social e a cidadania é mais lógico prevenir do que remediar. Todavia, questionamos: de fato a escola cuida destes aspectos?
A lógica da criminalidade elevada e da violência dentro da escola segue a seguinte corrente: incivilidade, irresponsabilidade social, anomia (princípio de agir sem lei) e anonimato. Estes fatores geram impunidade, acarretada também pela falta de investimento na educação como um todo dentro de um modelo econômico que não prioriza uma distribuição de renda que supere a desigualdade social. O que a escola faz diante disso tudo? Se não faz nada, o que poderia fazer? Penso que a escola não pode ser omissa na formação intencional de hábitos de decência, valores éticos, inteligência emocional, autonomia moral e excelência intelectual, bem como no desenvolvimento da cidadania, civilidade e responsabilidade social. Mas novamente surge a pergunta: como a escola pode trabalhar tudo isso? Num primeiro momento usando o fascínio que ela exerce para desenvolver os valores e a cidadania nas crianças. As diferentes teorias (disciplinas conteudistas) não causam impacto, não mudam o comportamento dos alunos. Se não se ensina cidadania com teorias, então o que pode ser feito? Ter consciência de si mesma como um paradigma já é um bom começo. A escola é um modelo de comportamento para os alunos, eles aprendem cidadania com o que a escola é, ou seja, uma instituição disciplinada e disciplinante. Como a escola funciona e quais são suas regras levam o aluno ao aprendizado da cidadania e de valores. O que a escola é ela transmite para seus alunos. A escola é um modelo vivo, ou para o bem ou para o mal, quer tenha consciência disto ou não. Assim sendo, a escola pode ensinar pelo que ela é como modelo vivo. Daí surge outro questionamento: o que a escola pratica como instituição?
No que diz respeito a construção moral e ética dentro da escola, os alunos aprendem mais participando, porque para crianças e adolescentes é mais forte ser ator do processo do que mero expectador, é mais forte participar de vivências que envolvam dilemas éticos do que ouvir discursos vazios e muitas vezes incoerentes. Por esta razão a escola precisa abrir espaço para discusões éticas e dilemas éticos e promover o protagonismo juvenil. Uma outra metodologia viável é trazer pessoas para dar um testemunho de vida, para contar seus dramas e levar os alunos ao mundo real. Também são válidos passeios e visitas com objetivos de discusão, reflexão e introspecção, bem como o incentivo ao voluntariado. A escola como organismo ético vivo precisa dar condições aos alunos para reflexão de questões e dilemas éticos. Os alunos precisam ser protagonistas neste processo. Uma escola que não é séria, que não tem auto-estima, não educa para valor nenhum. Uma escola séria se faz pela vontade do povo, pela vontade da sociedade de ter escolas boas e sérias que formem valores de maneira intencional e construam cidadãos conscientes.
Diante do exposto, fazem-se necessários alguns questionamentos: como podemos compreender a ética e a cidadania no contexto escolar? Como podemos fundamentar o desenvolvimento dos temas multidisciplinares: educação sexual, educação preventiva e educação para a convivência? Como a escola pode se organizar para uma prática que promova a construção de uma cultura de paz em contraposição a subcultura da violência? Primeiramente devemos refletir e considerar que há diferentes níveis e graus de violência. A violência tem que ser analisada no contexto do macrocosmo social e do microcosmo individual, no âmbito público, institucional e privado. Considerando que a violência se dá no contexto das relações interpessoais, faz-se necessário perguntar: como se dão as relações dentro da escola? Entre os professores? Entre os alunos? Ao definir o que é violência devemos considerar todas as respostas. A violência pode se manifestar como força física, força política, força espiritual e força psíquica. O fato é que diante das manifestações de violência, a escola deve se posicionar de maneira clara e objetiva como promotora de uma educação para a convivência e o respeito. É necessário contextualizar as manifestações da violência considerando os aspectos biopsicosociais e espirituais, dentro de uma cosmovisão de globalidade e localidade. Por exemplo: No aspecto biológico devem ser levadas em consideração as necessidades básicas para a sobrevivência, envolvendo situações de pobreza, fome, miséria, etc; No aspecto psicológico as estruturas psíquicas (estrutura neurótica, psicótica e perversa), as quais têm uma influência importante; No aspecto social devem ser analisadas as condições ou não para o exercício da cidadania; E no aspecto espiritual os valores éticos e morais. Devemos partir da premissa de que se a subcultura da violência foi construída historicamente ela pode ser desconstruída por uma cultura de paz e respeito. Todas as instituições socializadoras: família, igreja e escola, juntamente com órgãos públicos e Organizações Não-Governamentais (ONG’s) devem promover esta cultura de paz. A convivência escolar e o respeito devem ser construídos dentro de uma relação em rede, numa perspectiva que contemple a diversidade e favoreça a construção de uma ética e valores universais.
Outra dimensão que precisa ser avaliada é a que estabelece os pressupostos da competitividade e da exclusão, princípios geradores de violência. Por essa razão o conceito de relação precisa ser abordado e fundamentado numa perspectiva histórico-crítica. É necessário privilegiar os aspectos biopsicosociais, principalmente os aspectos dialéticos e críticos. São as relações que se estabelecem que definem um grupo como tal. As relações foram se estabelecendo entre as pessoas e os bens desde a pré-história passando pela revolução industrial e chegando até nossos dias, uma época histórica marcada pela presença constante da tecnologia digital. O modo de produção capitalista é definido nas relações de dominação e exploração. Portanto, passa a ser central hoje um modelo de relação, a relação da exclusão. Com as constantes transformações tecnológicas a maneira de se produzir as coisas e a maneira de se executar os serviços sofreram uma transformação profunda. Dentro deste contexto, as relações de dominação e exploração da produção capitalista sofreram uma queda, dando lugar a uma relação de exclusão, onde as pessoas são simplesmente excluídas do trabalho, excluídas da produção.
O neoliberalismo defende a bandeira da exclusão. O desenvolvimento ocasionado pelas novas tecnologias gera a lei da competitividade, o que pressupõe a liberdade do mercado. Todavia, a competitividade exige a exclusão. Todo processo é atrelado à competitividade, este é o pressuposto do neoliberalismo. Sendo assim, um dos resultados é um crescimento assustador da brecha entre ricos e pobres, apesar de uma produtividade mundial que chega a mais de quatro mil dólares per capta (por pessoa) ao ano, o que seria suficiente para que todos vivessem com conforto e dignidade. Esta má distribuição de renda dá origem ao quarto mundo, o mundo dos excluídos, da extrema pobreza, dos miseráveis. Nessa política da lógica da exclusão predomina o clima de indiferença anti-solidária, o que torna a imensa massa sobrante de seres humanos em objetos descartáveis vivendo como lixo da história. Outro resultado é o forte senso de individualização do social e um endeusamento do individual que cria um desemprego planejado e legitimado por teorias psico-sociais antiéticas. Desta maneira as pessoas são individualmente responsabilizados por uma situação econômica adversa e injusta, onde o social não existe ou é um faz de conta. Esta é uma ética individualista, pois se trata de uma microética em detrimento de uma macroética. Se isto não bastasse, é terrível constatar que além da exclusão social há uma exclusão dos saberes, porque o conhecimento científico de matriz eurocêntrica mostra desconfiança ao conhecimento espontâneo das pessoas comuns. A idéia iluminista de que o conhecimento científico dissipa a ignorância objetiva transformar as pessoas numa multidão de cientistas. Como escola e como educadores há a necessidade de reabilitar o saber popular que muitas vezes só está fundamentado na oralidade e na vida prática cotidiana. Na verdade o menosprezo pelos saberes populares esconde uma discriminação e uma tentativa de exclusão ou ao menos a supressão de um determinado tipo de saber. Esta atitude pode ser denominada de epistemicídio. Enquanto as práticas diferentes e alternativas de conhecimentos forem excluídas e os saberes populares forem impedidos de se legitimarem, enquanto o saber acadêmico e técnico-científico de matriz institucional eurocêntrica for hegemônico, dificilmente poder-se-á falar numa sociedade verdadeiramente democrática e pluralista, tanto política como cultural e economicamente. Na realidade essa relação de exclusão é apenas uma substituição das antigas relações de dominação e exploração. Na legitimação da exclusão a vítima é o próprio excluído. Na cosmovisão neoliberal não há espaço para o social, pois o ser humano é definido como indivíduo ou alguém que é um, mas não tem nada a ver com os outros. O indivíduo se torna o único responsável pelo seu êxito ou pelo seu fracasso, assim, quem vence é aprovado e aceito no sistema, e quem é vencido é excluído. Essa é a gênese do quarto mundo, o mundo dos excluídos. Portanto, faz-se necessário a adoção de novos caminhos, de novos modelos, de novos paradigmas que levem a propostas e atitudes humanizantes e éticas que conduzam a novas relações, fundamentadas no diálogo e no respeito à diversidade. Relações que sejam pluralistas, democráticas, participativas, solidárias, cidadãs e éticas.
Referência Bibliográfica:
SAWAIA, Bader (org.). Psicologia Social: As artimanhas da Exclusão – Análise psicosocial e ética da desigualdade social. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1999.
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