O MESMO, O OUTRO, O ETHOS LATINO-AMERICANO
Por: Osvaldo Luís Golfe
Por: Osvaldo Luís Golfe
Introdução:
Abordando este tema: "O Mesmo, o Outro, o Ethos Latino-Americano", na filosofia de Enrique Dussel, nos deparamos com uma "questão de fundo" que é a exploração sofrida por estes "povos periféricos", ou povos do terceiro mundo. Com certeza não somos os únicos; há mais povos que estão em estado de semelhante exploração e dominação. Isto tudo acontece quando "o Mesmo" fecha-se em si, torna-se auto-suficiente, melhor, etnocêntrico e não aceita "o Outro", a alteridade; não aceita o diferente, o novo, o dinâmico. Este, se aceito, poderia constituir uma ameaça para o mesmo. O outro quase nem é percebido. Na ontologia da totalidade não há espaço para o Outro, pois "outro", neste sentido, significa o não-ser, a negatividade.
Contra a lógica que não aceita a exterioridade, Dussel propõe a analética, isto é, tenta organizar um discurso a partir da liberdade do outro; nesta lógica o outro apresenta-se como alteridade quando irrompe como o estranho, o diferente, o distinto, o pobre, o oprimido, aquele que está a beira do caminho, fora do sistema e mostra seu rosto sofredor e grita por justiça. A analética tem origem não na ordem estabelecida da totalidade, mas no outro.
O continente Latino-Americano foi e é fortemente marcado pela exploração, por exemplo, o Brasil. Desde a colonização continua sendo explorado ininterruptamente; os nativos que aqui habitavam não foram respeitados como povo, cultura, etc. Uma tal situação é primeiro justificado por uma base teórica. O outro é revestido da impessoalidade do inimigo ou do estranho ou do inferior, então não há problema se o outro estiver sendo exterminado... Este "outro" está fora da totalidade; "não acrescenta" e "nem diminui" à totalidade.
Este mal não aparece de uma hora para outra mas é transmitido de geração em geração. A prática histórica ganha característica de lei. É por isso que, apesar de injusta, a exploração, às vezes é legal. Para Dussel, a legalidade não pode ser o fundamento da moralidade. Toda prática (justa) deve ir além do pré-estabelecido, da ontologia da totalidade, além da ordem legal vigente. A origem de um moralidade justa não está no Mesmo mas no Outro. A prática originada no Mesmo é uma prática alienante, opressora e dominadora.
A práxis libertadora constitui-se num novo projeto histórico que aposta na liberdade de Outro, dá ao oprimido a possibilidade de ser livre, tentando superar o pecado da dominação. A práxis libertadora abre caminhos para a posteridade.
Na ordem vigente tornou-se habitual, normal a dominação sobre. A América Latina é marcada profundamente pelo ethos da dominação. Isto acontece em dois momentos: o primeiro é quando explorada pela totalidade européia ou norte-americana; o segundo acontece quando um grupo (latino-americano) explora o resto do povo.
Segundo Dussel "o ethos é a maneira como cada homem e cada cultura vivem o ser". Onde predomina a ontologia da totalidade, o diferente é visto como ainda não-ser. É por isso que acreditamos na força do povo latino-americano. Temos confiança que da periferia do mundo erguer-se-á a alteridade, como distinta, diferente, autônoma.
1. O Mesmo, o Outro, o Ethos Latino-Americano
1.1 Conceitos Dusselianos
Sentimos a necessidade de primeiramente nos determos a respeito de alguns conceitos chaves na filosofia de Dussel. Estes, certamente nos possibilitarão uma maior compreensão da filosofia latinoamericana e deste trabalho. Todos estes conceitos que a seguir exporemos não são novos, porém Dussel faz uma nova leitura: pensa a partir das nações oprimidas e dominadas da periferia.
1.1.1) Proximidade
A filosofia grega e a européia moderna vê o "outro" como distante, diferente, o não-ser; aquele que foi "descoberto", dominado, controlado. Esta é a ontologia da totalidade: "o ser é, e o não-ser, não é".
O discurso que Dussel pretende é o que está além desta ontologia: a proximidade. Esta é uma categoria do face-a-face: entre filho(a) e mãe na amamentação; homem e mulher no relacionamento amoroso; ombro-a-ombro dos irmãos. Nestas categorias exemplifica-se a proximidade, a essência do homem, sua plenitude.
Neste relacionamento, o outro sempre precisa ser respeitado como outro, distinto, diferente.
O homem quando nasce é acolhido por alguém, esta é a primeira categoria da proximidade, esta é anterior a toda tematização da consciência. A proximidade é a raiz da práxis e o ponto de partida de toda a responsabilidade pelo outro.
Na história, a proximidade acontece no face-a-face com o outro; especificamente, na América Latina, a proximidade realiza-se no face-a-face com o povo oprimido, aquele que é exterior a todo o sistema e clama por justiça.
1.1.2) Totalidade
O mundo não é a soma exterior dos entes, mas, a totalidade dos entes com sentido. O mundo seria o espaço no qual o ente encontra o sentido.
A diferença entre mundo e cosmos é que do cosmos fazem parte todas as coisas compreendidas ou não pelo homem, enquanto "mundo" é a totalidade do sentido compreendida pelo homem. Sem a presença do homem não haveria "mundo", neste sentido; somente cosmos. O cosmos é anterior. "Como totalidade espacial o mundo sempre situa o eu, o homem como sujeito, como centro e, a partir de tal centro, organizam-se espacialmente os entes. Os que estão próximos sãos os entes que têm sentido".1
A partir desta totalidade (compreensão do ser como fundamento, identidade, totalidade) na filosofia Européia, as nações que estavam distante do centro "Mesmo" foram classificados com sem sentido, periféricos.
Neste sentido, a filosofia da Libertação procura detectar a origem da situação de dependência, dominação da América Latina; também procura identificar a origem do sofrimento do povo Latino Americano e sua aparente incapacidade de desenvolver-se.2
1.1.3) Metafísica da Alteridade
No Ocidente a tradição filosófica vigente é a ontologia da totalidade, negadora do outro como outro.
Para falar da metafísica da alteridade Dussel faz uso de um texto bíblico: Ex 33,11. Javé falava com Moisés face-a-face como o homem que fala com uma pessoa que lhe é íntima. O face-a-face é uma das categorias mais importantes do pensar de Dussel. Isto significa a proximidade, sem mediação, o aceitar o outro como outro, expor-se frente a frente com o "outro" numa relação de autenticidade. O face-a-face é o encontro de uma "totalidade aberta" e da alteridade que se revela. Sãos dois pólos abertos um ao outro; o outro permanece distinto, sem unidade prévia. O outro sempre constitui um mistério inapreensível totalmente. É impossível compreender o outro do mesmo modo que compreendem as coisas. A compreensão do outro faz-se através do ouvido atento ao "mundo" do outro.
"A metafísica da alteridade parte da experiência fundamental do ser humano: o face-a-face. No face-a-face estão frente-a-frente um eu e um tu igualmente pessoais. O ponto de partida não é mais a unidade do "Mesmo", mas a distinção.
Pelo fato de o outro ser distinto, é nada de meu mundo (eu, totalidade). Por isso, não pode ser compreendido racionalmente, tal como são os entes intra-mundanos".3
Por ser o outro originariamente distinto, o relacionamento possível é a abertura; o deixar o outro irromper na totalidade. O outro irrompe dentro da totalidade quando é ouvido, quando exige seus direitos, sua liberdade, sua distinção. É só através de sua revelação (do outro) que temos a possibilidade de melhor conhecê-lo.
"Quando se reconhece o outro como alguém, um além da totalidade, é possível uma "práxis de libertação" que procura reconstituir a alteridade, a liberdade de quem vive oprimido na totalidade. Essa práxis é essencialmente anti-fetichista, porquanto nega a falsa divindade da totalidade (o "fetiche"), no serviço ao "pobre" erótico, pedagógico e político".4
1.1.4) A exterioridade
O mundo é o mundo do sentido. Às vezes, porém, os entes ou o rosto das pessoas irrompem e não despertam o sentido; o outro quase não é percebido como outro e a sua presença parece algo que tem pouco sentido, por exemplo, o motorista de taxi parece ser parte da mecânica do carro, etc.
O outro revela-se como outro quando resiste em não ser algo, mas alguém "indivíduo", que interpela, deseja ser visto como tal. Este homem está transcendendo as "determinações normais" da realidade.
O querer ser livre implica uma realidade prática: assumir (estar consciente de sua situação) e lutar pela mudança. Para isto é necessário libertar-se primeiro da alienação e gritar contra o sistema injusto que oprime e exclui o pobre.
O pobre não tem lugar, não tem vez porque dentro de uma estrutura (ontologia da totalidade) não há espaço, por ser ele uma negatividade; é um não-ser às margens da totalidade. O pobre, então, é visto como alguém que precisa ser "ajudado", precisa de um prato de comida, mas nada se faz para mudar a estrutura de opressão para que o pobre se liberte.
A "lógica da exterioridade", segundo Dussel, tenta organizar seu discurso a partir da liberdade de outro. A origem deste discurso (desta lógica) está no outro como pobre, oprimido, ignorado e no seu reconhecimento como ser. Esta lógica em Dussel recebe o nome de analética, isto é, "fato real humano pelo qual todo homem, todo grupo no povo se situa "além" do horizonte da totalidade".5
Na analética, o outro apresenta-se como alteridade quando irrompe como o estranho, o diferente, o distinto, o pobre, o oprimido, aquele que está a beira do caminho, fora do sistema e mostra seu rosto sofredor e grita por justiça.
O seu direito funda-se na constituição da dignidade humana; o clamor, a provação, o grito é a sua própria condição de oprimido. Isto estende-se a nações inteiras, "periféricas", "terceiro mundo".
2. Ethos: O Fundamento
"O ethos é o ponto de partida para a compreensão do que funda o "humanum", ou seja, ele é como que o alicerce que sustenta o humano como fonte burbulhante e dinâmica, não estática, o ethos está na origem das normas e da própria diversidade das culturas e religiões. Vemo-lo como a marca primeira do criador impressa nos seres humanos".6
O ser humano, no seu dia-a-dia sente a necessidade de organizar a sua vida. Isto compreende as relações fundamentais do ser humano: a si mesmo, o mundo, o outro e a transcendência. A cada dia apresenta-se um novo e diferente desafio, e, é próprio do ser humano dar a resposta adequada conforme o lugar, tempo, costumes, etc. Cada grupo, aos poucos, cria um modo próprio habitual de compreender o mundo, isto é, ethos.
Ethos, sua etimologia é grega. Ethos designa costume, ou "moradia, o lugar onde se vive", o caráter, o modo de ser no mundo, a origem dos valores, as normas que estruturam uma civilização, um povo, de um grupo social ou simplesmente, de um indivíduo.
O ethos emerge em um mundo cultural, de um grupo, num período da história. As pessoas, no dia-a-dia diante das coisas adquirem hábitos, atitudes, modo de agir, e dão significados às coisas e atos. Isto constitui uma maneira de ser e de habitar o mundo. "O ethos é a maneira como cada homem e cada cultura vivem o ser. Se há história do homem, há também história do ethos".7
O ethos é o lugar onde elaboram-se os costumes, moral, etc; de lá também emana todo o mundo simbólico, mítico, os valores que sustentam a vida de uma povo.
O ethos está na raiz de cada cultura, de cada ser humano em particular, portanto, precede a qualquer regulamentação ou norma moral instituída.8
Com muito acerto diz-nos o professor Bernard Quelquejeu: "Se quisermos compreender concretamente as normas sociais, as prescrisções morais e as regras jurídicas, não podemos deixar de as referir a este fundo donde elas procedem e donde elas continuam tirando ao mesmo tempo sua eficacidade propriamente prática e o seu sentido efetivo. As normas práticas ou jurídicas só são sociologicamente interpretáveis quando referidas ao seu ethos concreto, isto graças à restituição tão precisa quanto possível a este fundo simbólico de evidências coletivas, atravessando por negociações e estratégias pessoais e coletivas que aparecem em termos de papéis, de funções e de poder"9. O acesso ao ethos faz-se através da escuta do outro, depois de cessar todas as nossas evidências. O ethos na maioria das vezes não é verbalizado, vive-se. Por isso seria muito difícil compreender o ethos através de biografias, informações, pré-compreensões, etc. É necessário "entrar no mundo do Outro", "viver o mundo do Outro", tentar compreender o mundo do outro a partir do outro mesmo. Só assim é possível descobrir quantos e quão preciosos valores há no Outro.
Falando especificamente com relação à América Latina, infelizmente isto não aconteceu. "Os conquistadores dispuseram a seu bel prazer dos bens e das vidas descobertas nas novas terras. Para nada se levou em conta o direito dos aborígenes sobre suas vidas, sua religião, sua cultura e suas terras. Para a totalidade não existe nada mais senão ela mesma; tudo o que percebe e o que valoriza é desde a sua própria mesmidade. O neo-colonialismo posterior e a atual dependência econômica de nossos povos prolonga a prática dominadora da mesmidade: nenhum povo dependente pode ter outro destino histórico ou criar outro projeto do que aquele que é imposto pelo império".10
Esta mesma perspectiva hoje se repete no plano econômico, político e cultural. O Outro "parece um mero receptor, consumidor" de produtos industrializados "pela totalidade", de planos político, modelos pedagógicos, músicas, teatro, filmes, linguagem, gírias, etc. Enfim, o Outro está encontrando dificuldade para ser realmente Outro.
3 - A Não Eticidade Dos Atos "Heróicos".
"O herói da ontologia da totalidade, não comete falta moral nem tem consciência da culpabilidade quando na guerra mata outro homem, o inimigo, seja esta a guerra dos gregos livres por sua pátria contra os bárbaros, seja a guerra moderna na qual um nazista mata um judeu, ou, quando na "competição" capitalista, o burguês consegue maior ganho: vencendo nos negócios o seu oponente no mercado, ou vendendo a morte de outros homens na indústria dos armamentos. Antes disso, os conquistadores dominaram o índio; os negreiros venderam africanos como "instrumentos" (escravos), e o gentleman ocupa a Ásia. Qual o tipo de ontologia que justifica a essas matanças do herói? Que tipo de lógica dirige a argumentação de tais injustiças"?11
Para justificar a morte de alguém, a exploração, a opressão, sem a culpabilidade moral, é necessária algo que fundamente. O outro é revestido da impessoalidade, do "inimigo", é visto como alguém de fora, diferente, ameaçador até, precisa ser eliminado, oprimido antes que este Outro levante-se contra e oprima, mate. O outro é visto como alguém diferente dentro da totalidade, subversivo, distinto ameaçador da ordem, da unidade.
O herói é o mantenedor da ordem, é a mediação pela qual o distinto, o diferente, o outro é eliminado. Seu nome (do herói) passa a ser exaltado, louvado pela coragem, valentia, imortalizado na pátria: "O Mesmo". O "Mesmo", a pátria, não aceita o Outro, o diferente.
O que fundamenta isto tudo é um modo de ver o Outro: alguém que não está em o "Mesmo". Isto é decorrência de uma ontologia do ser: o uno "o ser é, e, o não-ser não é", formada pelo sábio, pensador (grego). Este é aquele que formula uma base teórica, justificativa da prática. Modernamente quem desempenha este papel é o cientista.
"O ver, o compreender, o conhecer, o calcular, o pensar, o noein ou a gnosis é um modo divino ou supremo de ser homens na totalidade".12
Na ontologia da totalidade, ou "do uno e do múltiplo", o bem é o ser na unidade, enquanto o mal é produzido pela discórdia, pelo diferenciamento. A discórdia produz o mal.
Na filosofia platônica, o mal é, ou está na matéria; está é a causa, a fonte de todos os males (o não-ser), oposto ao ser; é o mal ontológico, portanto, não ético, de originalidade divina. Este mal é vivenciado pela ontologia da totalidade da modernidade: o mal é algo já realizado no fundamento, intrinsecamente não-ético.
Kant destaca a origem do mal para o plano a priori numênico, impossível descobrir a raiz do mal, pois este precede a toda experiência.
Resumindo: nesta ontologia (da totalidade) é possível uma sociedade que não aceita a alteridade, uma sociedade etnocêntrica. O herói, nesta estrutura, é o encarregado de lutar contra o "outro", o diferente, o distinto; o sábio elabora a base teórica revestindo o Outro de impessoalidade. "A perfeição se obtém alcançando a honra ao matar aquele que se opõe: aniquilando a pluralidade, e conhecendo a totalidade de ("o Mesmo") como a origem idêntica da diferença. O todo como fundamento, não é ético: é simplesmente verdadeiro".13
4. O Mal Ético Como Totalização Da Totalidade
Para os gregos (ontologia da Totalidade) o mal é originário, divino. Sendo assim, o homem é um mero executor.
Há relatos mítico que nos ajudam a compreender esta questão. Por exemplo, o mito de Caim e Abel. Este mito revela uma luta de morte entre os dois irmãos: "Caim se lançou sobre o irmão Abel e o matou" (Gn 4, 8). O outro é eliminado pelo "mesmo".
O mito (a expressão mitológica), tem uma grande riqueza de transmitir algo de universal pra todos os tempos. A morte simbólica do Outro não aconteceu só com Abel; é algo que é freqüente na política, na pedagogia, em casa na relação marido e mulher, pais e filhos quando há dominação sobre o Outro, aniquilação da alteridade.
A negação da alteridade, o não-ao-outro acontece na relação homem e mulher quando o outro é reduzido a objeto de prazer; na total submissão do filho à vontade dos pais, professores, mestres impedindo que os alunos caminhem com as próprias pernas; "o não-ao-outro como irmão, à questão política, é a luta de morte dos iguais até a escravidão de um em favor do senhor. O não-ao-outro é a negação de exterioridade, essa afirmação totalitária da totalidade, é matar o Outro".14
Isto está arraigado no pensamento filosófico também da modernidade: com o "ego cagito" há um fechamento tal que o outro desaparece; ou, na expressão de Hobbes "o homem lobo do homem"..., etc. e a aniquilação do outro absoluto com o "o deus morreu" de Nietzsche. Na verdade isto tudo já historicamente tinha sido praticado, com a opressão de outros povos.
O outro é negado quando não é visto como distinto, lhe é negada a liberdade. Este é o total fechamento de "o Mesmo" e a aniquilação da alteridade, negação do novo, do dinâmico, da criatividade.
O mal, o total fechamento em "o Mesmo", a morte do Outro, a estrutura de dominação e morte (não só físico) podemos dizer, existe já a priori no sentido de que é uma estrutura transmitida de geração em geração com "aparência de normal"; a educação que recebemos é parte da estrutura. Por isso o ver o outro como outro, autêntico, livre, mestre é muito difícil.
O pecado, o não-ao-outro, a morte só se torna possível porque, primeiro, o outro é reduzido a nada, reduzido a uma simples coisa. O sentimento por eles é um sentimento de inveja, ódio, não compreensão da alteridade.
5. O Bem Ético Como Justiça
O mal constitui-se pelo não-ao-outro. O bem, pelo contrário, é o sim-ao-outro (na ontologia da totalidade). "A totalidade abre-se ao Outro e alcança nessa passagem analética e dialética seu próprio bem particular na crítica inovadora ao todo e no crescimento que sabe "dar lugar" ao ato criador que aperfeiçoa além do horizonte da verdade do ser".15
O bem é a afirmação do outro. O homem bom é aquele que é realizado em suas potencialidades, em seus projetos, consegue equilibrar teoria e práxis em favor do Outro. O homem é aquele que move a história, abre a totalidade ao Outro, abre-se, por bondade, compreensão ao Outro como outro gratuitamente, por amor-de-justiça. Um exemplo típico de tal amor é o "bom samaritano". O samaritano é alguém que descobre o outro ferido, machucado. O amor-de-justiça vai além da raça ou nação. Além da cor ou nação todos têm um direito que é inalienável: o direito a vida, a liberdade, autenticidade.
A personalidade do profeta também expressa o amor-de-justiça. O profeta é alguém que é chamado, que irrompe, que consegue verbalizar uma situação opressora e denuncia a injustiça que é praticada. O profeta emerge como o rosto do outro sofrido, oprimido, negado como diferente, emerge em sua defesa. Sua tarefa não é a formação de mais uma totalidade, mas a abertura e a libertação do Outro como Outro; sua satisfação está no serviço. O profeta tem a justiça como seu modo de ser.
6. Consciência Ética Como Ouvir A Voz Do Outro
Primeiramente precisamos distinguir entre consciência ética e consciência moral. A primeira situa-se no âmbito da (ou no plano) da meta-física antológica; o segundo situa-se no plano ôntico: é a interiorização da consciência ética. É esta consciência ética, que possibilita a consciência moral.
Para ilustrar esta questão queremos citar (tomar) como exemplo Moisés: "Moisés convocou todo o Israel e lhe disse: escuta, Israel as normas e as exigências da justiça que falo diante de vossos ouvidos, hoje. Aprendei-as e guardai-as para pô-las em prática... sobre a montanha, no meio do fogo, Javé vos falou face-a-face, e eu então permaneci entre Javé e vós pora fazer-vos conhecer a palavra de Javé".16 Aqui trata-se de uma voz que interpela, mas, que tem necessidade de alguém que a compreenda, alguém que seja o mediador; é necessário um ouvido que saiba ouvir a voz do outro. Como outro isto significa "uma abertura ética, um expor-se pelo Outro que ultrapassa a mera abertura ontológica",17 isto é, aniquilamento da própria voz como totalidade e deixar que a voz do outro, livre, autenticamente se expresse.
A consciência ética é um dialogo equilibrado entre a voz do outro e o ouvido aberto da totalidade. Isto é possível por causa do sim-ao-outro, ou, por causa do amor-de-justiça. Assim o outro pode revelar-se como algo novo; apropria-se da dignidade que tem; (por isso sua voz passa a ser ouvida, interpretada). "A consciência ética é então ouvir-a-voz-do-outro; a voz ou palavra que exige justiça, que exige seu direito, (...), quem ouve a voz do outro só pode lançar-se no caminho da justiça".18
Por outro lado, a não consciência ética significa eliminar o Outro, silenciar a sua voz, expor-lhe a regime de dominação e repressão, não compreendendo o seu modo de ser, hábito, cultura. A não consciência ética se expressa na atitude do conquistador, do colonizador, fechado em sua totalidade etnocêntrica, querendo impor seus costumes, sua cultura. A América Latina sabe quais as conseqüências deste "ethos dominador". "Quando o conquistador dizia aos chibatas de Nova Granada: "Dai-me ouro, dai-me ouro" e matavam índios e sacrilegamente abria os túmulos para roubar tal ouro, não era a voz ética da consciência, mas a própria tentação dominadora".19
Saber escutar a voz do outro é deixá-lo ser Outro, autêntico; deixar que o seu modo de ser interpele, provoque a totalidade do Mesmo; abrir a totalidade fechada a estranha voz do outro: oprimido, pobre, explorado; da mulher oprimida numa sociedade patriarcal, do filho, do aluno que muitas vezes é impedido de pensar com autenticidade e caminhar com suas próprias pernas.
7. Legalidade Da Injustiça
Nem tudo o que é legal é justo moralmente, e, nem tudo o que é justo moralmente é legal.
Na história da filosofia, à questão da moralidade e da legalidade, foram dadas várias respostas, porém tornou-se habitual pensar que a legalidade é a moralidade.20
Na Idade Média a lei humana estava fundamentada na lei divina eterna. Segundo este esquema, os que estavam fora da cristandade eram os infiéis, os bárbaros, o desconhecido. Estes eram reduzidos aos não-ser. "... Na ordem legal da cristandade entrava totalmente o cristão – especialmente o homem de Igreja e a família feudal – estando fora de tal ordem o herege, o sarraceno, o islâmico, etc. A oposição à lei da cristandade era imoral e merecia até a morte física e a ex-comunhão como morte espiritual. A ilegalidade de tal ordem legal era praticamente anti-natural, desumana, maligna.
Kant, com a moral do dever, situa a moralidade na ação x lei: "Age de tal forma que a máxima de tua vontade possa valer sempre e ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal". (E. Kant).
Kant distingue legalidade e moralidade: moralidade é cumprir a lei por amor, por dever. No entanto, dever, em Kant é entendido como vontade livre, e não imposição; por respeito à lei. A legalidade é a coincidência com a lei. As ações, porém, sempre estão fundamentadas na vontade livre, no dever. (Exemplo: faço o bem por que devo, quero).
Para Dussel, a legalidade não pode ser o fundamento da moralidade, visto que toda prática deve ir além do pré-estabelecido, da ontologia da totalidade, além da ordem legal vigente; sua origem (a práxis) não está no "Mesmo" mas no Outro.
A prática atual "moralmente boa" cumpre o projeto da totalidade vigente. Este projeto tem uma fundamentação histórica. A prática histórica concedeu legalidade à prática atual; a dominação passa a ser o fundamento da lei. Por isso "a práxis que busca na lei vigente o fundamento de sua moralidade torna-se necessariamente práxis alienante do Outro oprimido como coisa ao serviço do dominador".21 A práxis da opressão até poderia ser "moralmente boa" a partir do ponto de vista de "o Mesmo", ou, legalmente justo, porém, é um ato injusto se olharmos para além da ordem estabelecida.
A práxis analética tem sua origem não na ordem estabelecida, mas no Outro, portanto, foge à legalidade. O ir além do projeto vigente, escutar a voz do Outro que clama por justiça, constitui a sua ilegalidade.
O novo projeto histórico é o que deixa o outro ser livre, lança o oprimido na possibilidade de ser livre; é uma nova ordem, na qual o respeito pelo outro é esperança de futuro; é desejo a superação do pecado, da dominação; é a origem da práxis libertadora que abre caminho para a posteridade.
8. O Ethos Da Dominação
Já tornou-se habitual a dominação dentro da totalidade, por isso: ethos da dominação. Não é algo novo, esporádico, mas "é normal", tornou-se "habitual". Este "habitual" é algo adquirido, visto que, ninguém nasce com o "hábito" de dominar. Isto é algo que faz parte do ethos de um povo, que é "o fruto dos modos de habitar o mundo".22
O modo de habitar o mundo é fruto da repetição. É por isso que "virtude" na Ética a Nicômaco de Aristóteles é um modo habitual de habitar o mundo, e o mesmo pode-se dizer dos vícios.
Segundo Nietzsche é necessário um processo histórico para que um ethos se torne imperante. Assim também acontece com os vícios e as virtudes tanto do dominador quanto do dominado.
Os vícios do dominado, o oprimido são elevados aos nível de virtudes, sua humildade é exaltada. Tal processo não valoriza o Outro como exterioridade. "O pior vício do dominado é o ressentimento contra o dominador. O ressentimento e o auto-envenenamento anímico por repressão de um ato querido de vingança que o fraco não pode realizar em sua impotência contra o seu dominador".23 Isto não quer dizer que o oprimido não quer libertar-se, ele não pode, não lhe é permitido que o faça. Assim, a impotência passa a ser chamada bondade; a submissão forçada é chamada obediência, e forma-se um ethos onde o oprimido precisa aceitar-se como oprimido para sobreviver, e, repetirá a opressão sofrida se algum dia chegar a ser dominador.
A expressão moderna do ethos da dominação aparece com Nietzsche. Nietzsche com sua "vontade de poder" certamente não estaria ao lado do dominado, do Asteca ou do Inca. Nietzsche estaria do lado de Napoleão, da conquista, da invasão, da expansão de "o Mesmo". "Sua vontade de domínio não é senão a formulação ontológica do "eu conquisto" hispânico ou do "eu penso" cartesiano. Sua virtude suprema, o bem como a guerra, o guerreiro injusto e conquistador como herói pátrio é a mais cega, opressora e desumana das atitudes possíveis: o ethos da dominação que apresenta como virtude insigne o assassinato, a violência, ou melhor, a violação do Outro".24
O ethos da dominação origina-se do fechamento da totalidade em si mesma. No ethos da dominação os vícios do dominado passam a ser considerados virtudes pelo dominador.
A ética da libertação procura junto com o oprimido libertá-lo; procura desvelar o "caráter de naturalidade" dos atos do dominador; procura ver que nem sempre a legalidade é justiça.
9. Ethos Da Libertação
No ethos da dominação o conquistador, o guerreiro, a vontade de poder são exaltados. Oposto a este ethos está o ethos da libertação que carateriza-se pelo lançar a história para o futuro, para o novo, para o momento criativo, para o reconhecimento do Outro; sabe ouvir a voz interpelante do Outro. O ponto de apoio do ethos da libertação são as virtudes reais do oprimido (ocultas ao dominador) e por estes são vistas como incultas. A virtude libertadora aparecerá contrária a ordem vigente: será subversiva, anarquista, nova, etc.
"O ethos da libertação é um modo habitual de não repetir "o Mesmo" (conteúdo do agir) porque se trata do hábito de adotar a posição primeira do face-a-face".25 Assim, o Outro sempre aparece como novo e revelador de si mesmo, pois, esta é a virtude do ethos da libertação: deixar o Outro existir como Outro, deixá-lo existir além da totalidade.
O fundamento do ethos da libertação é o amor-de-justiça, isto é, um modo de viver o mundo, cuja visão ultrapassa os limites da totalidade. É uma atitude de respeito, amor livre, criativo, simpatia ao Outro como Outro. "Esse amor do face-a-face, do Outro como Outro, é ato supremo do ser humano e nenhum ato compreensor, nem interpretador pode assemelhar-se a ele".26
Um componente essencial do ethos da libertação que se origina do face-a-face é a confiança. Esta possibilita a interpretação da voz do Outro. A confiança é obedecer a voz do Outro, ter fé na alteridade; "é a negação da totalidade como identidade do ser e do pensar".27
Outro momento originário do face-a-face é viver a utopia da libertação, isto é, a esperança da libertação do Outro, do miserável. Ela se funda naquilo que o Outro é e naquilo que possa fazer a partir de si mesmo como Outro; é um momento de afirmação do futuro como Outro, seu projeto. A esperança está internamente relacionada com o futuro do Outro.
Portanto, o amor-de-justiça, a confiança e a esperança são as posições do ethos da libertação perante o Outro. A seguir queremos falar sobre o serviço ao Outro.
O serviço ao Outro se expressa na prática da justiça, na prática do amor como hábito que tende dar ao Outro o que lhe corresponde: enquanto Outro, enquanto pessoa inalienável. "Justiça é um colocar à disposição do Outro os entes que podem saciar a sua fome, mediar sua libertação cultural e humana integralmente".28
O serviço ao Outro também se expressa na coragem do libertador que arrisca sua vida em defesa da vida do Outro; empenha-se por saciar-lhe a fome.
A prática da justiça, o ser capaz de entregar a vida, trabalhar para saciar a fome do Outro é um constante desafio para todos nós onde estivermos. Enfim, o Outro sempre nos interpela a uma mudança de visão, mudança de mentalidade.
Conclusão
Se vigora atualmente um "ethos de dominação" na e sobre a América Latina, precisamos apostar num ethos de libertação, isto é, apostar em um momento novo, criativo, dinâmico, autônomo. O fundamento do ethos da libertação é o amor-de-justiça; amor este que é ilustrado pelo bom samaritano. O ethos da libertação também caracteriza-se pelo saciar a fome do outro. Este será o eterno desafio para todos nós.
A filosofia da libertação procura também instaurar uma práxis de libertação para que o oprimido possa ser ouvido, sejam respeitados em seus direitos, em sua liberdade; para que a negatividade possa ser positividade, isto é, a afirmação da alteridade. Isto com certeza não será algo vindo gratuitamente a partir da totalidade, mas será algo conquistado com muito esforço e muita luta.
Penso que um tal trabalho começa pela dissolução dos preconceitos, como a inferioridade, incapacidade de um pensamento próprio, etc, dos quais somos vítimas.O povo latino-americano precisa resgatar a consciência de que é um povo, tem uma nocionalidade pela qual precisa lutar, defender, defender-se; resgatar a consciência de que tem uma cultura que nos é comum a ser preservada. Apesar da grande aparente diversidade de culturas existentes na América Latina, nós, latino-americanos temos um ethos próprio e que é o fundamento da nossa moralidade e que precisamos vivenciá-lo e também purificá-lo, pois no ethos de um povo podem estar presente muitos desvalores.
Abordando este tema: "O Mesmo, o Outro, o Ethos Latino-Americano", na filosofia de Enrique Dussel, nos deparamos com uma "questão de fundo" que é a exploração sofrida por estes "povos periféricos", ou povos do terceiro mundo. Com certeza não somos os únicos; há mais povos que estão em estado de semelhante exploração e dominação. Isto tudo acontece quando "o Mesmo" fecha-se em si, torna-se auto-suficiente, melhor, etnocêntrico e não aceita "o Outro", a alteridade; não aceita o diferente, o novo, o dinâmico. Este, se aceito, poderia constituir uma ameaça para o mesmo. O outro quase nem é percebido. Na ontologia da totalidade não há espaço para o Outro, pois "outro", neste sentido, significa o não-ser, a negatividade.
Contra a lógica que não aceita a exterioridade, Dussel propõe a analética, isto é, tenta organizar um discurso a partir da liberdade do outro; nesta lógica o outro apresenta-se como alteridade quando irrompe como o estranho, o diferente, o distinto, o pobre, o oprimido, aquele que está a beira do caminho, fora do sistema e mostra seu rosto sofredor e grita por justiça. A analética tem origem não na ordem estabelecida da totalidade, mas no outro.
O continente Latino-Americano foi e é fortemente marcado pela exploração, por exemplo, o Brasil. Desde a colonização continua sendo explorado ininterruptamente; os nativos que aqui habitavam não foram respeitados como povo, cultura, etc. Uma tal situação é primeiro justificado por uma base teórica. O outro é revestido da impessoalidade do inimigo ou do estranho ou do inferior, então não há problema se o outro estiver sendo exterminado... Este "outro" está fora da totalidade; "não acrescenta" e "nem diminui" à totalidade.
Este mal não aparece de uma hora para outra mas é transmitido de geração em geração. A prática histórica ganha característica de lei. É por isso que, apesar de injusta, a exploração, às vezes é legal. Para Dussel, a legalidade não pode ser o fundamento da moralidade. Toda prática (justa) deve ir além do pré-estabelecido, da ontologia da totalidade, além da ordem legal vigente. A origem de um moralidade justa não está no Mesmo mas no Outro. A prática originada no Mesmo é uma prática alienante, opressora e dominadora.
A práxis libertadora constitui-se num novo projeto histórico que aposta na liberdade de Outro, dá ao oprimido a possibilidade de ser livre, tentando superar o pecado da dominação. A práxis libertadora abre caminhos para a posteridade.
Na ordem vigente tornou-se habitual, normal a dominação sobre. A América Latina é marcada profundamente pelo ethos da dominação. Isto acontece em dois momentos: o primeiro é quando explorada pela totalidade européia ou norte-americana; o segundo acontece quando um grupo (latino-americano) explora o resto do povo.
Segundo Dussel "o ethos é a maneira como cada homem e cada cultura vivem o ser". Onde predomina a ontologia da totalidade, o diferente é visto como ainda não-ser. É por isso que acreditamos na força do povo latino-americano. Temos confiança que da periferia do mundo erguer-se-á a alteridade, como distinta, diferente, autônoma.
1. O Mesmo, o Outro, o Ethos Latino-Americano
1.1 Conceitos Dusselianos
Sentimos a necessidade de primeiramente nos determos a respeito de alguns conceitos chaves na filosofia de Dussel. Estes, certamente nos possibilitarão uma maior compreensão da filosofia latinoamericana e deste trabalho. Todos estes conceitos que a seguir exporemos não são novos, porém Dussel faz uma nova leitura: pensa a partir das nações oprimidas e dominadas da periferia.
1.1.1) Proximidade
A filosofia grega e a européia moderna vê o "outro" como distante, diferente, o não-ser; aquele que foi "descoberto", dominado, controlado. Esta é a ontologia da totalidade: "o ser é, e o não-ser, não é".
O discurso que Dussel pretende é o que está além desta ontologia: a proximidade. Esta é uma categoria do face-a-face: entre filho(a) e mãe na amamentação; homem e mulher no relacionamento amoroso; ombro-a-ombro dos irmãos. Nestas categorias exemplifica-se a proximidade, a essência do homem, sua plenitude.
Neste relacionamento, o outro sempre precisa ser respeitado como outro, distinto, diferente.
O homem quando nasce é acolhido por alguém, esta é a primeira categoria da proximidade, esta é anterior a toda tematização da consciência. A proximidade é a raiz da práxis e o ponto de partida de toda a responsabilidade pelo outro.
Na história, a proximidade acontece no face-a-face com o outro; especificamente, na América Latina, a proximidade realiza-se no face-a-face com o povo oprimido, aquele que é exterior a todo o sistema e clama por justiça.
1.1.2) Totalidade
O mundo não é a soma exterior dos entes, mas, a totalidade dos entes com sentido. O mundo seria o espaço no qual o ente encontra o sentido.
A diferença entre mundo e cosmos é que do cosmos fazem parte todas as coisas compreendidas ou não pelo homem, enquanto "mundo" é a totalidade do sentido compreendida pelo homem. Sem a presença do homem não haveria "mundo", neste sentido; somente cosmos. O cosmos é anterior. "Como totalidade espacial o mundo sempre situa o eu, o homem como sujeito, como centro e, a partir de tal centro, organizam-se espacialmente os entes. Os que estão próximos sãos os entes que têm sentido".1
A partir desta totalidade (compreensão do ser como fundamento, identidade, totalidade) na filosofia Européia, as nações que estavam distante do centro "Mesmo" foram classificados com sem sentido, periféricos.
Neste sentido, a filosofia da Libertação procura detectar a origem da situação de dependência, dominação da América Latina; também procura identificar a origem do sofrimento do povo Latino Americano e sua aparente incapacidade de desenvolver-se.2
1.1.3) Metafísica da Alteridade
No Ocidente a tradição filosófica vigente é a ontologia da totalidade, negadora do outro como outro.
Para falar da metafísica da alteridade Dussel faz uso de um texto bíblico: Ex 33,11. Javé falava com Moisés face-a-face como o homem que fala com uma pessoa que lhe é íntima. O face-a-face é uma das categorias mais importantes do pensar de Dussel. Isto significa a proximidade, sem mediação, o aceitar o outro como outro, expor-se frente a frente com o "outro" numa relação de autenticidade. O face-a-face é o encontro de uma "totalidade aberta" e da alteridade que se revela. Sãos dois pólos abertos um ao outro; o outro permanece distinto, sem unidade prévia. O outro sempre constitui um mistério inapreensível totalmente. É impossível compreender o outro do mesmo modo que compreendem as coisas. A compreensão do outro faz-se através do ouvido atento ao "mundo" do outro.
"A metafísica da alteridade parte da experiência fundamental do ser humano: o face-a-face. No face-a-face estão frente-a-frente um eu e um tu igualmente pessoais. O ponto de partida não é mais a unidade do "Mesmo", mas a distinção.
Pelo fato de o outro ser distinto, é nada de meu mundo (eu, totalidade). Por isso, não pode ser compreendido racionalmente, tal como são os entes intra-mundanos".3
Por ser o outro originariamente distinto, o relacionamento possível é a abertura; o deixar o outro irromper na totalidade. O outro irrompe dentro da totalidade quando é ouvido, quando exige seus direitos, sua liberdade, sua distinção. É só através de sua revelação (do outro) que temos a possibilidade de melhor conhecê-lo.
"Quando se reconhece o outro como alguém, um além da totalidade, é possível uma "práxis de libertação" que procura reconstituir a alteridade, a liberdade de quem vive oprimido na totalidade. Essa práxis é essencialmente anti-fetichista, porquanto nega a falsa divindade da totalidade (o "fetiche"), no serviço ao "pobre" erótico, pedagógico e político".4
1.1.4) A exterioridade
O mundo é o mundo do sentido. Às vezes, porém, os entes ou o rosto das pessoas irrompem e não despertam o sentido; o outro quase não é percebido como outro e a sua presença parece algo que tem pouco sentido, por exemplo, o motorista de taxi parece ser parte da mecânica do carro, etc.
O outro revela-se como outro quando resiste em não ser algo, mas alguém "indivíduo", que interpela, deseja ser visto como tal. Este homem está transcendendo as "determinações normais" da realidade.
O querer ser livre implica uma realidade prática: assumir (estar consciente de sua situação) e lutar pela mudança. Para isto é necessário libertar-se primeiro da alienação e gritar contra o sistema injusto que oprime e exclui o pobre.
O pobre não tem lugar, não tem vez porque dentro de uma estrutura (ontologia da totalidade) não há espaço, por ser ele uma negatividade; é um não-ser às margens da totalidade. O pobre, então, é visto como alguém que precisa ser "ajudado", precisa de um prato de comida, mas nada se faz para mudar a estrutura de opressão para que o pobre se liberte.
A "lógica da exterioridade", segundo Dussel, tenta organizar seu discurso a partir da liberdade de outro. A origem deste discurso (desta lógica) está no outro como pobre, oprimido, ignorado e no seu reconhecimento como ser. Esta lógica em Dussel recebe o nome de analética, isto é, "fato real humano pelo qual todo homem, todo grupo no povo se situa "além" do horizonte da totalidade".5
Na analética, o outro apresenta-se como alteridade quando irrompe como o estranho, o diferente, o distinto, o pobre, o oprimido, aquele que está a beira do caminho, fora do sistema e mostra seu rosto sofredor e grita por justiça.
O seu direito funda-se na constituição da dignidade humana; o clamor, a provação, o grito é a sua própria condição de oprimido. Isto estende-se a nações inteiras, "periféricas", "terceiro mundo".
2. Ethos: O Fundamento
"O ethos é o ponto de partida para a compreensão do que funda o "humanum", ou seja, ele é como que o alicerce que sustenta o humano como fonte burbulhante e dinâmica, não estática, o ethos está na origem das normas e da própria diversidade das culturas e religiões. Vemo-lo como a marca primeira do criador impressa nos seres humanos".6
O ser humano, no seu dia-a-dia sente a necessidade de organizar a sua vida. Isto compreende as relações fundamentais do ser humano: a si mesmo, o mundo, o outro e a transcendência. A cada dia apresenta-se um novo e diferente desafio, e, é próprio do ser humano dar a resposta adequada conforme o lugar, tempo, costumes, etc. Cada grupo, aos poucos, cria um modo próprio habitual de compreender o mundo, isto é, ethos.
Ethos, sua etimologia é grega. Ethos designa costume, ou "moradia, o lugar onde se vive", o caráter, o modo de ser no mundo, a origem dos valores, as normas que estruturam uma civilização, um povo, de um grupo social ou simplesmente, de um indivíduo.
O ethos emerge em um mundo cultural, de um grupo, num período da história. As pessoas, no dia-a-dia diante das coisas adquirem hábitos, atitudes, modo de agir, e dão significados às coisas e atos. Isto constitui uma maneira de ser e de habitar o mundo. "O ethos é a maneira como cada homem e cada cultura vivem o ser. Se há história do homem, há também história do ethos".7
O ethos é o lugar onde elaboram-se os costumes, moral, etc; de lá também emana todo o mundo simbólico, mítico, os valores que sustentam a vida de uma povo.
O ethos está na raiz de cada cultura, de cada ser humano em particular, portanto, precede a qualquer regulamentação ou norma moral instituída.8
Com muito acerto diz-nos o professor Bernard Quelquejeu: "Se quisermos compreender concretamente as normas sociais, as prescrisções morais e as regras jurídicas, não podemos deixar de as referir a este fundo donde elas procedem e donde elas continuam tirando ao mesmo tempo sua eficacidade propriamente prática e o seu sentido efetivo. As normas práticas ou jurídicas só são sociologicamente interpretáveis quando referidas ao seu ethos concreto, isto graças à restituição tão precisa quanto possível a este fundo simbólico de evidências coletivas, atravessando por negociações e estratégias pessoais e coletivas que aparecem em termos de papéis, de funções e de poder"9. O acesso ao ethos faz-se através da escuta do outro, depois de cessar todas as nossas evidências. O ethos na maioria das vezes não é verbalizado, vive-se. Por isso seria muito difícil compreender o ethos através de biografias, informações, pré-compreensões, etc. É necessário "entrar no mundo do Outro", "viver o mundo do Outro", tentar compreender o mundo do outro a partir do outro mesmo. Só assim é possível descobrir quantos e quão preciosos valores há no Outro.
Falando especificamente com relação à América Latina, infelizmente isto não aconteceu. "Os conquistadores dispuseram a seu bel prazer dos bens e das vidas descobertas nas novas terras. Para nada se levou em conta o direito dos aborígenes sobre suas vidas, sua religião, sua cultura e suas terras. Para a totalidade não existe nada mais senão ela mesma; tudo o que percebe e o que valoriza é desde a sua própria mesmidade. O neo-colonialismo posterior e a atual dependência econômica de nossos povos prolonga a prática dominadora da mesmidade: nenhum povo dependente pode ter outro destino histórico ou criar outro projeto do que aquele que é imposto pelo império".10
Esta mesma perspectiva hoje se repete no plano econômico, político e cultural. O Outro "parece um mero receptor, consumidor" de produtos industrializados "pela totalidade", de planos político, modelos pedagógicos, músicas, teatro, filmes, linguagem, gírias, etc. Enfim, o Outro está encontrando dificuldade para ser realmente Outro.
3 - A Não Eticidade Dos Atos "Heróicos".
"O herói da ontologia da totalidade, não comete falta moral nem tem consciência da culpabilidade quando na guerra mata outro homem, o inimigo, seja esta a guerra dos gregos livres por sua pátria contra os bárbaros, seja a guerra moderna na qual um nazista mata um judeu, ou, quando na "competição" capitalista, o burguês consegue maior ganho: vencendo nos negócios o seu oponente no mercado, ou vendendo a morte de outros homens na indústria dos armamentos. Antes disso, os conquistadores dominaram o índio; os negreiros venderam africanos como "instrumentos" (escravos), e o gentleman ocupa a Ásia. Qual o tipo de ontologia que justifica a essas matanças do herói? Que tipo de lógica dirige a argumentação de tais injustiças"?11
Para justificar a morte de alguém, a exploração, a opressão, sem a culpabilidade moral, é necessária algo que fundamente. O outro é revestido da impessoalidade, do "inimigo", é visto como alguém de fora, diferente, ameaçador até, precisa ser eliminado, oprimido antes que este Outro levante-se contra e oprima, mate. O outro é visto como alguém diferente dentro da totalidade, subversivo, distinto ameaçador da ordem, da unidade.
O herói é o mantenedor da ordem, é a mediação pela qual o distinto, o diferente, o outro é eliminado. Seu nome (do herói) passa a ser exaltado, louvado pela coragem, valentia, imortalizado na pátria: "O Mesmo". O "Mesmo", a pátria, não aceita o Outro, o diferente.
O que fundamenta isto tudo é um modo de ver o Outro: alguém que não está em o "Mesmo". Isto é decorrência de uma ontologia do ser: o uno "o ser é, e, o não-ser não é", formada pelo sábio, pensador (grego). Este é aquele que formula uma base teórica, justificativa da prática. Modernamente quem desempenha este papel é o cientista.
"O ver, o compreender, o conhecer, o calcular, o pensar, o noein ou a gnosis é um modo divino ou supremo de ser homens na totalidade".12
Na ontologia da totalidade, ou "do uno e do múltiplo", o bem é o ser na unidade, enquanto o mal é produzido pela discórdia, pelo diferenciamento. A discórdia produz o mal.
Na filosofia platônica, o mal é, ou está na matéria; está é a causa, a fonte de todos os males (o não-ser), oposto ao ser; é o mal ontológico, portanto, não ético, de originalidade divina. Este mal é vivenciado pela ontologia da totalidade da modernidade: o mal é algo já realizado no fundamento, intrinsecamente não-ético.
Kant destaca a origem do mal para o plano a priori numênico, impossível descobrir a raiz do mal, pois este precede a toda experiência.
Resumindo: nesta ontologia (da totalidade) é possível uma sociedade que não aceita a alteridade, uma sociedade etnocêntrica. O herói, nesta estrutura, é o encarregado de lutar contra o "outro", o diferente, o distinto; o sábio elabora a base teórica revestindo o Outro de impessoalidade. "A perfeição se obtém alcançando a honra ao matar aquele que se opõe: aniquilando a pluralidade, e conhecendo a totalidade de ("o Mesmo") como a origem idêntica da diferença. O todo como fundamento, não é ético: é simplesmente verdadeiro".13
4. O Mal Ético Como Totalização Da Totalidade
Para os gregos (ontologia da Totalidade) o mal é originário, divino. Sendo assim, o homem é um mero executor.
Há relatos mítico que nos ajudam a compreender esta questão. Por exemplo, o mito de Caim e Abel. Este mito revela uma luta de morte entre os dois irmãos: "Caim se lançou sobre o irmão Abel e o matou" (Gn 4, 8). O outro é eliminado pelo "mesmo".
O mito (a expressão mitológica), tem uma grande riqueza de transmitir algo de universal pra todos os tempos. A morte simbólica do Outro não aconteceu só com Abel; é algo que é freqüente na política, na pedagogia, em casa na relação marido e mulher, pais e filhos quando há dominação sobre o Outro, aniquilação da alteridade.
A negação da alteridade, o não-ao-outro acontece na relação homem e mulher quando o outro é reduzido a objeto de prazer; na total submissão do filho à vontade dos pais, professores, mestres impedindo que os alunos caminhem com as próprias pernas; "o não-ao-outro como irmão, à questão política, é a luta de morte dos iguais até a escravidão de um em favor do senhor. O não-ao-outro é a negação de exterioridade, essa afirmação totalitária da totalidade, é matar o Outro".14
Isto está arraigado no pensamento filosófico também da modernidade: com o "ego cagito" há um fechamento tal que o outro desaparece; ou, na expressão de Hobbes "o homem lobo do homem"..., etc. e a aniquilação do outro absoluto com o "o deus morreu" de Nietzsche. Na verdade isto tudo já historicamente tinha sido praticado, com a opressão de outros povos.
O outro é negado quando não é visto como distinto, lhe é negada a liberdade. Este é o total fechamento de "o Mesmo" e a aniquilação da alteridade, negação do novo, do dinâmico, da criatividade.
O mal, o total fechamento em "o Mesmo", a morte do Outro, a estrutura de dominação e morte (não só físico) podemos dizer, existe já a priori no sentido de que é uma estrutura transmitida de geração em geração com "aparência de normal"; a educação que recebemos é parte da estrutura. Por isso o ver o outro como outro, autêntico, livre, mestre é muito difícil.
O pecado, o não-ao-outro, a morte só se torna possível porque, primeiro, o outro é reduzido a nada, reduzido a uma simples coisa. O sentimento por eles é um sentimento de inveja, ódio, não compreensão da alteridade.
5. O Bem Ético Como Justiça
O mal constitui-se pelo não-ao-outro. O bem, pelo contrário, é o sim-ao-outro (na ontologia da totalidade). "A totalidade abre-se ao Outro e alcança nessa passagem analética e dialética seu próprio bem particular na crítica inovadora ao todo e no crescimento que sabe "dar lugar" ao ato criador que aperfeiçoa além do horizonte da verdade do ser".15
O bem é a afirmação do outro. O homem bom é aquele que é realizado em suas potencialidades, em seus projetos, consegue equilibrar teoria e práxis em favor do Outro. O homem é aquele que move a história, abre a totalidade ao Outro, abre-se, por bondade, compreensão ao Outro como outro gratuitamente, por amor-de-justiça. Um exemplo típico de tal amor é o "bom samaritano". O samaritano é alguém que descobre o outro ferido, machucado. O amor-de-justiça vai além da raça ou nação. Além da cor ou nação todos têm um direito que é inalienável: o direito a vida, a liberdade, autenticidade.
A personalidade do profeta também expressa o amor-de-justiça. O profeta é alguém que é chamado, que irrompe, que consegue verbalizar uma situação opressora e denuncia a injustiça que é praticada. O profeta emerge como o rosto do outro sofrido, oprimido, negado como diferente, emerge em sua defesa. Sua tarefa não é a formação de mais uma totalidade, mas a abertura e a libertação do Outro como Outro; sua satisfação está no serviço. O profeta tem a justiça como seu modo de ser.
6. Consciência Ética Como Ouvir A Voz Do Outro
Primeiramente precisamos distinguir entre consciência ética e consciência moral. A primeira situa-se no âmbito da (ou no plano) da meta-física antológica; o segundo situa-se no plano ôntico: é a interiorização da consciência ética. É esta consciência ética, que possibilita a consciência moral.
Para ilustrar esta questão queremos citar (tomar) como exemplo Moisés: "Moisés convocou todo o Israel e lhe disse: escuta, Israel as normas e as exigências da justiça que falo diante de vossos ouvidos, hoje. Aprendei-as e guardai-as para pô-las em prática... sobre a montanha, no meio do fogo, Javé vos falou face-a-face, e eu então permaneci entre Javé e vós pora fazer-vos conhecer a palavra de Javé".16 Aqui trata-se de uma voz que interpela, mas, que tem necessidade de alguém que a compreenda, alguém que seja o mediador; é necessário um ouvido que saiba ouvir a voz do outro. Como outro isto significa "uma abertura ética, um expor-se pelo Outro que ultrapassa a mera abertura ontológica",17 isto é, aniquilamento da própria voz como totalidade e deixar que a voz do outro, livre, autenticamente se expresse.
A consciência ética é um dialogo equilibrado entre a voz do outro e o ouvido aberto da totalidade. Isto é possível por causa do sim-ao-outro, ou, por causa do amor-de-justiça. Assim o outro pode revelar-se como algo novo; apropria-se da dignidade que tem; (por isso sua voz passa a ser ouvida, interpretada). "A consciência ética é então ouvir-a-voz-do-outro; a voz ou palavra que exige justiça, que exige seu direito, (...), quem ouve a voz do outro só pode lançar-se no caminho da justiça".18
Por outro lado, a não consciência ética significa eliminar o Outro, silenciar a sua voz, expor-lhe a regime de dominação e repressão, não compreendendo o seu modo de ser, hábito, cultura. A não consciência ética se expressa na atitude do conquistador, do colonizador, fechado em sua totalidade etnocêntrica, querendo impor seus costumes, sua cultura. A América Latina sabe quais as conseqüências deste "ethos dominador". "Quando o conquistador dizia aos chibatas de Nova Granada: "Dai-me ouro, dai-me ouro" e matavam índios e sacrilegamente abria os túmulos para roubar tal ouro, não era a voz ética da consciência, mas a própria tentação dominadora".19
Saber escutar a voz do outro é deixá-lo ser Outro, autêntico; deixar que o seu modo de ser interpele, provoque a totalidade do Mesmo; abrir a totalidade fechada a estranha voz do outro: oprimido, pobre, explorado; da mulher oprimida numa sociedade patriarcal, do filho, do aluno que muitas vezes é impedido de pensar com autenticidade e caminhar com suas próprias pernas.
7. Legalidade Da Injustiça
Nem tudo o que é legal é justo moralmente, e, nem tudo o que é justo moralmente é legal.
Na história da filosofia, à questão da moralidade e da legalidade, foram dadas várias respostas, porém tornou-se habitual pensar que a legalidade é a moralidade.20
Na Idade Média a lei humana estava fundamentada na lei divina eterna. Segundo este esquema, os que estavam fora da cristandade eram os infiéis, os bárbaros, o desconhecido. Estes eram reduzidos aos não-ser. "... Na ordem legal da cristandade entrava totalmente o cristão – especialmente o homem de Igreja e a família feudal – estando fora de tal ordem o herege, o sarraceno, o islâmico, etc. A oposição à lei da cristandade era imoral e merecia até a morte física e a ex-comunhão como morte espiritual. A ilegalidade de tal ordem legal era praticamente anti-natural, desumana, maligna.
Kant, com a moral do dever, situa a moralidade na ação x lei: "Age de tal forma que a máxima de tua vontade possa valer sempre e ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal". (E. Kant).
Kant distingue legalidade e moralidade: moralidade é cumprir a lei por amor, por dever. No entanto, dever, em Kant é entendido como vontade livre, e não imposição; por respeito à lei. A legalidade é a coincidência com a lei. As ações, porém, sempre estão fundamentadas na vontade livre, no dever. (Exemplo: faço o bem por que devo, quero).
Para Dussel, a legalidade não pode ser o fundamento da moralidade, visto que toda prática deve ir além do pré-estabelecido, da ontologia da totalidade, além da ordem legal vigente; sua origem (a práxis) não está no "Mesmo" mas no Outro.
A prática atual "moralmente boa" cumpre o projeto da totalidade vigente. Este projeto tem uma fundamentação histórica. A prática histórica concedeu legalidade à prática atual; a dominação passa a ser o fundamento da lei. Por isso "a práxis que busca na lei vigente o fundamento de sua moralidade torna-se necessariamente práxis alienante do Outro oprimido como coisa ao serviço do dominador".21 A práxis da opressão até poderia ser "moralmente boa" a partir do ponto de vista de "o Mesmo", ou, legalmente justo, porém, é um ato injusto se olharmos para além da ordem estabelecida.
A práxis analética tem sua origem não na ordem estabelecida, mas no Outro, portanto, foge à legalidade. O ir além do projeto vigente, escutar a voz do Outro que clama por justiça, constitui a sua ilegalidade.
O novo projeto histórico é o que deixa o outro ser livre, lança o oprimido na possibilidade de ser livre; é uma nova ordem, na qual o respeito pelo outro é esperança de futuro; é desejo a superação do pecado, da dominação; é a origem da práxis libertadora que abre caminho para a posteridade.
8. O Ethos Da Dominação
Já tornou-se habitual a dominação dentro da totalidade, por isso: ethos da dominação. Não é algo novo, esporádico, mas "é normal", tornou-se "habitual". Este "habitual" é algo adquirido, visto que, ninguém nasce com o "hábito" de dominar. Isto é algo que faz parte do ethos de um povo, que é "o fruto dos modos de habitar o mundo".22
O modo de habitar o mundo é fruto da repetição. É por isso que "virtude" na Ética a Nicômaco de Aristóteles é um modo habitual de habitar o mundo, e o mesmo pode-se dizer dos vícios.
Segundo Nietzsche é necessário um processo histórico para que um ethos se torne imperante. Assim também acontece com os vícios e as virtudes tanto do dominador quanto do dominado.
Os vícios do dominado, o oprimido são elevados aos nível de virtudes, sua humildade é exaltada. Tal processo não valoriza o Outro como exterioridade. "O pior vício do dominado é o ressentimento contra o dominador. O ressentimento e o auto-envenenamento anímico por repressão de um ato querido de vingança que o fraco não pode realizar em sua impotência contra o seu dominador".23 Isto não quer dizer que o oprimido não quer libertar-se, ele não pode, não lhe é permitido que o faça. Assim, a impotência passa a ser chamada bondade; a submissão forçada é chamada obediência, e forma-se um ethos onde o oprimido precisa aceitar-se como oprimido para sobreviver, e, repetirá a opressão sofrida se algum dia chegar a ser dominador.
A expressão moderna do ethos da dominação aparece com Nietzsche. Nietzsche com sua "vontade de poder" certamente não estaria ao lado do dominado, do Asteca ou do Inca. Nietzsche estaria do lado de Napoleão, da conquista, da invasão, da expansão de "o Mesmo". "Sua vontade de domínio não é senão a formulação ontológica do "eu conquisto" hispânico ou do "eu penso" cartesiano. Sua virtude suprema, o bem como a guerra, o guerreiro injusto e conquistador como herói pátrio é a mais cega, opressora e desumana das atitudes possíveis: o ethos da dominação que apresenta como virtude insigne o assassinato, a violência, ou melhor, a violação do Outro".24
O ethos da dominação origina-se do fechamento da totalidade em si mesma. No ethos da dominação os vícios do dominado passam a ser considerados virtudes pelo dominador.
A ética da libertação procura junto com o oprimido libertá-lo; procura desvelar o "caráter de naturalidade" dos atos do dominador; procura ver que nem sempre a legalidade é justiça.
9. Ethos Da Libertação
No ethos da dominação o conquistador, o guerreiro, a vontade de poder são exaltados. Oposto a este ethos está o ethos da libertação que carateriza-se pelo lançar a história para o futuro, para o novo, para o momento criativo, para o reconhecimento do Outro; sabe ouvir a voz interpelante do Outro. O ponto de apoio do ethos da libertação são as virtudes reais do oprimido (ocultas ao dominador) e por estes são vistas como incultas. A virtude libertadora aparecerá contrária a ordem vigente: será subversiva, anarquista, nova, etc.
"O ethos da libertação é um modo habitual de não repetir "o Mesmo" (conteúdo do agir) porque se trata do hábito de adotar a posição primeira do face-a-face".25 Assim, o Outro sempre aparece como novo e revelador de si mesmo, pois, esta é a virtude do ethos da libertação: deixar o Outro existir como Outro, deixá-lo existir além da totalidade.
O fundamento do ethos da libertação é o amor-de-justiça, isto é, um modo de viver o mundo, cuja visão ultrapassa os limites da totalidade. É uma atitude de respeito, amor livre, criativo, simpatia ao Outro como Outro. "Esse amor do face-a-face, do Outro como Outro, é ato supremo do ser humano e nenhum ato compreensor, nem interpretador pode assemelhar-se a ele".26
Um componente essencial do ethos da libertação que se origina do face-a-face é a confiança. Esta possibilita a interpretação da voz do Outro. A confiança é obedecer a voz do Outro, ter fé na alteridade; "é a negação da totalidade como identidade do ser e do pensar".27
Outro momento originário do face-a-face é viver a utopia da libertação, isto é, a esperança da libertação do Outro, do miserável. Ela se funda naquilo que o Outro é e naquilo que possa fazer a partir de si mesmo como Outro; é um momento de afirmação do futuro como Outro, seu projeto. A esperança está internamente relacionada com o futuro do Outro.
Portanto, o amor-de-justiça, a confiança e a esperança são as posições do ethos da libertação perante o Outro. A seguir queremos falar sobre o serviço ao Outro.
O serviço ao Outro se expressa na prática da justiça, na prática do amor como hábito que tende dar ao Outro o que lhe corresponde: enquanto Outro, enquanto pessoa inalienável. "Justiça é um colocar à disposição do Outro os entes que podem saciar a sua fome, mediar sua libertação cultural e humana integralmente".28
O serviço ao Outro também se expressa na coragem do libertador que arrisca sua vida em defesa da vida do Outro; empenha-se por saciar-lhe a fome.
A prática da justiça, o ser capaz de entregar a vida, trabalhar para saciar a fome do Outro é um constante desafio para todos nós onde estivermos. Enfim, o Outro sempre nos interpela a uma mudança de visão, mudança de mentalidade.
Conclusão
Se vigora atualmente um "ethos de dominação" na e sobre a América Latina, precisamos apostar num ethos de libertação, isto é, apostar em um momento novo, criativo, dinâmico, autônomo. O fundamento do ethos da libertação é o amor-de-justiça; amor este que é ilustrado pelo bom samaritano. O ethos da libertação também caracteriza-se pelo saciar a fome do outro. Este será o eterno desafio para todos nós.
A filosofia da libertação procura também instaurar uma práxis de libertação para que o oprimido possa ser ouvido, sejam respeitados em seus direitos, em sua liberdade; para que a negatividade possa ser positividade, isto é, a afirmação da alteridade. Isto com certeza não será algo vindo gratuitamente a partir da totalidade, mas será algo conquistado com muito esforço e muita luta.
Penso que um tal trabalho começa pela dissolução dos preconceitos, como a inferioridade, incapacidade de um pensamento próprio, etc, dos quais somos vítimas.O povo latino-americano precisa resgatar a consciência de que é um povo, tem uma nocionalidade pela qual precisa lutar, defender, defender-se; resgatar a consciência de que tem uma cultura que nos é comum a ser preservada. Apesar da grande aparente diversidade de culturas existentes na América Latina, nós, latino-americanos temos um ethos próprio e que é o fundamento da nossa moralidade e que precisamos vivenciá-lo e também purificá-lo, pois no ethos de um povo podem estar presente muitos desvalores.
Bibliografia
AGOSTINI, N. Ética e Evangelização, 1a. ed., Vozes, 1993, 174 p.
AMES, J. L., Liberdade e Libertação na Ética de Dussel, CEFIL, Campo Grande, 1992, 165 p.
COSTA, M., Educação e Libertação na América Latina, CEFIL, Campo Grande, 1992, 112 p.
DUSSEL, E. D. Para uma Ética da Libertação Latino-Americana, v. I, II, III, IV, e V, Loyola/Unimer, SP.
LAMPE, A., (org.) Enrique Dussel, Ética e a Filosofia da Libertação, vozes, 1995, 325 p.
REGINA, J. E.M., Filosofia Latino-Americana e Filosofia da Libertação, CEFIL, Campo Grande - MS, 1992, 154 p.
VELASCO, S. L., Filosofia da Libertação, CEFIL, Campo Grande - MS, 1991, 197 p.
Notas
1 REGINA, J. E. M, Filosofia Latino- Americana e Filosofia da Libertação, p. 80
2 AMES, J. L., Liberdade e Libertação na Ética de Dussel, p. 37-38
3 Idem. p. 38.
4 Idem. p. 39
5 Dussel, E., Para uma ética da Libertação Latino-América - Eticidade e Morlidade, 85
6 AGOSTINI, Nilo. Ética e Evangelização. p. 21
7 DUSSEL, E., Para Uma Ética de Libertação Latino-Americana - Eticidade e Moralidade, p. 9.
8 Neste sentido, percebemos a clara diferença entre ethos e ética. O primeiro é anterior a qualquer regulamentação instituída, enquanto a ética pertence a ordem da racionalidade. A ética se distingue do ethos e também da moral pelo seu caráter mais reflexivo na sistematização dos valores das normas.
9 AGOSTINI, N., Ética e Evangelização. p. 24
10 Idem. p. 42.
11 Dussel, E., Para uma ética da Libertação Latino-América - Eticidade e Morlidade, p.10
12 Idem, p. 11
13 Idem, p. 22
14 Idem. p. 28
15 Idem. p. 40
16 Dt 5,1-5
17 Dussel, E., Para uma ética da Libertação Latino-América - Eticidade e Morlidade, p. 63
18 Idem, p. 69
19 Idem, p. 70
20 Idem, p. 81
21 Idem, p. 86
22 Dussel. E., Para Uma Ética da Libertação Latino - Americana - Eticidade e Moralidade p. 98.
23 Idem, p. 101
24 Idem, p. 104
25 Idem, p. 130
26 Idem, p. 139
27 Idem, p. 141
28 Idem, p. 149
5 comentários:
Humanitarias Leyes de Indias de la Reina Isabel de Castilla
A tua consciencia, libro de Antonio Maria Lunardi
El islam civilizó (sic) a Marruecos y España (Gandhi)
Prefiero el término "Iberoamericano"
¡Viva España!
Postar um comentário