As Estações do Corpo


Pode ser difícil de perceber, mas, acredite, no verão você é um indivíduo diferente daquele que foi no inverno. As reações emocionais se alteram conforme o clima e a luz do ambiente.

Quem considera o verão a estação da luz e da alegria, e espera ardentemente por ele, está mais perto da ciência do que pensa. Um número cada vez maior de pesquisas está mostrando que a temperatura e a luminosidade afetam diretamente nosso comportamento. Cada vez mais os cientistas estão comprovando que os estados de ânimo sofrem influências sazonais. Um estudo realizado em 1996 pela psiquiatra Helena Calil, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sobre o peso do clima no cotidiano de 750 habitantes da cidade de São Paulo, revelou que para a maioria deles o verão é um bálsamo para o inverno. Quase 50% disseram ter sofrido incômodo físico e psicológico concentrado nos meses mais frios, junho, julho e agosto. Reclamaram de perda de vitalidade, desânimo, mal-estar, melancolia e depressão (veja infográfico abaixo).

Entretanto, férias, viagens e descanso não são as únicas previsões para este verão ensolarado. A violência urbana, infelizmente, vai aumentar. Não se trata de especulação catastrófica, mas de evidência estatística. Uma outra pesquisa, recém-concluída, revela que dezembro é o mês em que ocorre o maior número de ações violentas — como acidentes de trânsito, homicídios, suicídios e agressões. Estranhamente, tanto para a depressão, no inverno, quanto para agressividade, no verão, a causa é a mesma: o sol, ausente ou radiante.

O alerta sobre o verão é do professor Francisco Mendonça, do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que comparou, em dez capitais, as variações climáticas e os índices de violência e criminalidade. Mendonça descobriu que, onde o clima tem estações marcantes (em todo o Sul e no Sudeste), o verão é sempre mais violento, enquanto as ocorrências policiais diminuem durante os meses de temperatura baixa. Para o pesquisador, o calor e suas conseqüências, como o aumento do ritmo cardíaco, a elevação da temperatura do corpo, a dilatação dos vasos e a transpiração, provocariam irritação, excitação, agressividade e explosões emocionais (veja gráficos abaixo).

Causa e efeito

De modo que o verão traz, junto com a alegria, maior explosividade. Isso não quer dizer que todo mundo vai sair por aí batendo no colega do lado. As reações individuais são muito diferenciadas: uns são naturalmente mais predispostos do que outros às influências do ambiente. Só não resta dúvida de que, em algum grau, todos somos afetados pelo clima. "Como qualquer matéria, o corpo humano também reage às mudanças climáticas, o que influi no nosso metabolismo e no comportamento", diz Mendonça.

O horário de verão — o adiantamento dos relógios para economizar energia, proposto pela primeira vez por Benjamin Franklin em 1784 — pode causar "desordem corporal interna". Trata-se de um mal-estar decorrente de uma reação do relógio biológico à mudança brusca. Segundo os médicos do Grupo de Desenvolvimento e Ritmos Biológicos da Universidade de São Paulo, ela afeta diretamente o humor, o apetite e a saúde.

Há tantas coincidências estatísticas e conclusões precárias em estudos de influência climática quanto enigmas. Até hoje, apenas uma doença mental associada à ação das estações do ano foi diagnosticada, em 1987: o transtorno afetivo sazonal. Trata-se de uma depressão que, no inverno, provoca excesso de fome e de sono, induzindo a aumento de peso, mas que pode ser tratada com a exposição à luz artificial. Segundo Helena Calil, 5% de todos os casos de depressão têm suas causas na variação do tempo.

Desde 1960, quando os especialista se reuniram nos Estados Unidos e fundaram a Cronobiologia — a ciência que estuda os ritmos biológicos do corpo (veja quadro na página ao lado) —, sabe-se que a regulagem de funções como respiração, circulação, digestão, sono e excreção é feita pela luz do dia. Nelson Marques, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), não tem dúvidas de que "o ambiente determina mudanças fisiológicas e de comportamento". O corpo tem um relógio interno, sincronizado pela duração dos dias e das noites, que gera os chamados ciclos circadianos.

Dois hormônios

A resposta aos enigmas pode estar em dois hormônios que atuam nos ciclos circadianos, a serotonina e a melatonina — esta uma transformação da primeira induzida por aminoácidos. Muitos pesquisadores consideram a melatonina, um hormônio relaxante produzido só à noite, um fator capaz de causar sonolência e desânimo em indivíduos. Abundante nas noites longas do inverno, ela diminuiria o ânimo em dias de pouca luz (veja infográfico abaixo). "Mas a melatonina também é responsável pela concentração de serotonina no cérebro, um neurotransmissor que está relacionado ao humor e à irritabilidade", ressalta o neurofisiologista Roberto Frussa Filho, da Universidade Federal de São Paulo. Assim, com as noites curtas de verão, tanto a melatonina quanto a serotonina escasseiam. "Baixos níveis de serotonina no cérebro, no verão, provocariam mais agressividade, contribuindo para o aumento da criminalidade e dos suicídios nessa época do ano", diz Calil.

Para a psiquiatra, a queda de serotonina no verão, com o conseqüente aumento de agressividade, também poderia explicar outro estudo conduzido por ela, que identificou no verão brasileiro uma maior ocorrência de suicídios — gesto que define como "auto-agressão". É a mesma conclusão de uma pesquisa espanhola feita em 1997. Os pesquisadores Alonso Garcia e Pinana Lopez, do Centro de Salud La Unión, na cidade de Murcia, analisaram os registros de suicídios de 1986 a 1993 e verificaram que o mês com o maior número de casos foi julho — pleno verão espanhol.

Esquizofrenia

Há estudos que esbarram em dúvidas para as quais a ciência não tem respostas. O dinamarquês Preben Mortensen, do Instituto de Pesquisa em Psiquiatria Básica da Universidade de Aarhus, publicou em 1999, no The New England Journal of Medicine, um trabalho atribuindo maior probabilidade de ocorrência de casos de esquizofrenia, na Dinamarca, em gente nascida no fim do inverno, em fevereiro e março. Os nascidos em agosto e setembro apresentam menos incidência . Por quê, não se sabe. "A estação do nascimento deve ser vista como uma fonte de fatores que contribuem diretamente para o risco de contrair esquizofrenia", diz apenas a conclusão.

Boa parte da especulação advém do fato de que "o quanto sentimos desses efeitos, e como eles se manifestam, depende da fragilidade biológica de cada um", diz a professora Dóris Moreno, do Grupo de Doenças Afetivas do Hospital das Clínicas de São Paulo. O que ninguém duvida é de que "o sistema nervoso é flexível e se molda a mudanças ambientais", como afirma o neurofisiologista Gilberto Xavier, do Instituto de Biociências da USP. Xavier adverte para conclusões apressadas sobre relações de causa e efeito entre clima e comportamento. No estudo dinamarquês, nota, o resultado poderia expressar tanto uma influência do ambiente na gestante quanto no recém-nascido, ou mesmo na atitude da mãe junto ao bebê.

Quando anoitece, o hipotálamo, órgão situado no centro do cérebro, recebe da retina informações sobre a queda da luminosidade no ambiente.

Nele funciona o núcleo supraquiasmático, nosso relógio biológico. O núcleo orienta as funções de todo o corpo por meio da glândula pineal, sempre obedecendo à luminosidade.

Durante a noite, o núcleo supraquiasmático aciona outro núcleo, o paraventricular, que impulsiona a glândula pineal para produzir a melatonina. É esse hormônio relaxante que tem a função de percorrer a corrente sanguínea informando as células que é hora de repousar.

A pineal é uma fábrica de hormônios. Dentro dela produz-se, sem parar, o neurotransmissor serotonina, matéria-prima da melatonina. Mas só à noite a ausência de luz permite à serotonina virar melatonina.

Hora do suco

O sistema digestivo também tem hora certa para funcionar. Comer em horários irregulares significa elevar a produção de suco gástrico quando o sistema digestivo não está programado para a tarefa. Isso pode causar úlcera e gastrite.

Coração operário

O coração muda de ritmo. Sua variação pode ser percebida pela mudança da temperatura do corpo, que vai de 35 graus Celsius às 5 horas da manhã a 37 graus Celsius às 18 horas. Trabalhar à noite significa forçá-lo a esforçar-se fora de compasso.

Quando o sol começa nascer, o hipotálamo recebe da retina, na forma de sinais elétricos, a informação do aumento de luz, ainda que estejamos de olhos fechados ou dormindo. O relógio biológico é sicronizado pela luminosidade, independentemente de nossa vontade.

Informado de que o dia raiou, o núcleo supraquiasmático passa a bloquear o trabalho do núcleo paraventricular, por meio de um aminoácido chamado gaba.

Sem as ordens do hipotálamo, a pineal suspende a transformação da serotonina em melatonina. Sem melatonina, as células do corpo percebem que chegou a hora de despertar. O corpo já está preparado para as atividades diurnas. A serotonina da pineal fica armazenada para reiniciar um ciclo de produção de melatonina na próxima noite.

Não foi um biólogo, mas um astrônomo, quem descobriu a existência dos ciclos biológicos. Em 1729, o francês Jean Jacques De Mairan percebeu que uma planta do seu observatório se comportava de modo estranho: à noite, a flor (provavelmente uma mimosa) parecia dormir, ficando com as folhas murchas. Durante o dia ocorria o inverso: suas folhas abriam-se. Intrigado, guardou a planta em um local totalmente escuro e percebeu que ela mantinha as mesmas reações nos mesmo horários. De Mairan escreveu um artigo, Observation Botanique, e o enviou à Academia de Ciências de Paris informando que, aparentemente, a planta tinha uma marcação interna de tempo. A descoberta, entretanto, não despertou interesse, permanecendo apenas como uma curiosidade. Só em 1960, com a realização do Simpósio sobre Relógios Biológicos, organizado pelo Cold Spring Harbor Laboratories, dos Estados Unidos, a Cronobiologia veio a ser formalizada como área de estudos biológicos.

Bem utilizados, luz, clima e estações do ano podem melhorar a qualidade de vida. Nos Estados Unidos, a empresa Lockheed Missiles, da Califórnia, inaugurou um edifício para 2 000 funcionários, em Sunnyvale, com um átrio central e janelas que projetam a luz do sol dentro do prédio. No ano seguinte à mudança, os funcionários faltaram 15% menos ao trabalho e a produtividade cresceu 15%. Marcelo Rómero, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, cita o fato como exemplo de que a proximidade do ambiente externo torna o trabalho mais agradável.

Na educação, há vários estudos sobre mudança climática. Um dos mais recentes foi relatado pelo pesquisador Tim Brennen, especialista em Psicologia Cognitiva da Universidade de Tromso, na Noruega. Ele apresentou à Associação Britânica de Psicologia, em novembro passado, uma pesquisa com 100 indivíduos, feita em regiões da Noruega onde a estação fria é longa e escura. Verificou que, em testes de memória e de resolução rápida, eles tiveram um resultado melhor durante o inverno do que no verão. Conclusão: algumas habilidades mentais, como memória e atenção, melhoram na estação fria.

Para aproveitar o clima é preciso conhecer sua influência. Francisco Mendonça, da Universidade Federal do Paraná, acha que, no Brasil, poucos cientistas investigam seu impacto no comportamento por medo de serem identificados com o "determinismo climático", corrente de pensamento dominante até meados do século XX. Deterministas como o geógrafo americano Ellsworth Huntigton (1876-1947) chegaram a atribuir ao clima o exagero de moldar o "caráter" de países. Mendonça, é lógico, discorda. "Seria um erro considerar o clima como fator isolado de mudanças comportamentais", diz o geógrafo. Mas, pelas pesquisas cada vez mais freqüentes, seria um erro maior ainda ignorá-lo.

Numa temperatura ambiente acima de 30 graus Celsius, a circulação sanguínea expande-se pelo corpo todo com intensidade para liberar calor. As pessoas ficam vermelhas e coradas.

Para liberar calor, as glândulas sudoríparas absorvem água de diversas partes do corpo e, ao liberá-la pelos poros, mandam a quentura para fora. Quando o suor na pele é removido pelo vento, ocorre uma sensação de alívio e frescor.

Quando a temperatura está abaixo de 15 graus Celsius, o sangue concentra-se na parte central do corpo, mantendo aquecidos órgãos como o coração e o intestino. O resultado são mãos e pés frios.

No frio, quando os pêlos se arrepiam, criam uma cobertura para proteger a pele do contato com o ar frio. Dessa forma, procuram reter o ar quente que está próximo ao corpo.

Para produzir calor durante o frio, os músculos trepidam num exercício involuntário, quebrando açúcares para produzir energia. É quando se "treme de frio".

O Rio Grande do Sul é a maior vítima de ventos repentinos no Brasil. Ali passa o minuano, que provoca uma queda de até 20 graus Celsius na temperatura, e o vento norte, quente e seco, que reduz a umidade do ar a menos de 25%, quando o ideal é que ela fique entre 60% e 70%. Muitos gaúchos tornam-se impacientes e irritados quando começa a ventania. Maria da Graça Sartori, professora da Universidade Federal de Santa Maria (RS) que estuda a influência do clima, explica: "Assim como quem mergulha no mar, estamos afundados em uma atmosfera que tem pressão, temperatura e eletricidade estática". Para ela, "quando há uma alteração brusca, temos o humor alterado por essa gangorra ambiental". (Fonte: Super Arquivo)

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